Recordo de um livro muito interessante de Francesco Carnelutti "AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL, FRANCESCO CARNELUTTI
Tradução, JOSÉ ANTONIO CARDINALLI, 1995, CONAN"
No Prefácio da obra, traduzida por Cardinalli, descreve a "via crucis" tomada pelo causídico e as dificuldades do processo. A humilhação é a marca mais evidente nesse ofício. Porém, a nobreza de espírito do advogado denota o seu caráter e a sua função social se torna muito maior diante das injustiças.
Tendo
vivido, como advogado, o tormento do pretório, faz questão de retratar, sem
rodeios, o sofrimento do que tem como profissão postular os direitos do
acusado, mostrando, inclusive, a humilhação a que é submetido o defensor que,
embora usando toga, como o Juiz e o Promotor, é colocado, sempre, em posição
inferior!.
Com efeito, na obra que está sendo
examinada, em tão boa hora traduzida para o vernáculo, Carnelutti deixa
escrito: "A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta:
sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. As pessoas não
compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e riem, zombam e
escarnecem. Não é um mister, que goza da simpatia do público, aquela do
Cirineu. As razões, pelas quais a advocacia é objeto, no campo literário e
também no campo litúrgico, de uma difundida antipatia, não são outras senão
estas. Perfino Manzoni, quando teve de retratar um advogado, perdeu a sua
bondade e a Igreja deixou introduzir no hino de Santo Ivo, patrono dos
advogados, um verso afrontoso. As coisas mais simples são as mais difíceis de
entender". (p. 5)
"Deixemos claro: a experiência do advogado
é signo da humilhação. Ele veste, porém, a toga; ele colabora, entretanto, para
a administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo; não no alto. Ele divide
com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado. Ele está sujeito ao
juiz, como está sujeito o acusado. Mas justamente por isto a advocacia é um
exercício espiritualmente salutar. Pesa a obrigação de pedir, mas recompensa.
Habitua-se a suplicar. O que é mais senão um pedir a súplica? A soberba é o
verdadeiro obstáculo à suplicação; e a soberba é uma ilusão de poder. Não há
nada melhor que advocacia para sanar tal ilusão de potência. O maior dos
advogados sabe não poder nada frente ao menor dos juízes; entretanto, o menor
dos juízes é aquele que o humilha mais". (pág. 27)
"Daí, ser grande o número de colegas,
muitas vezes competentes, preparados, hábeis e vitoriosos, que abandonam, de um
momento para outro, a advocacia, para se dedicarem a outros misteres:
faltou-lhes humildade, não tiveram resistência para suportar a humilhação, que,
infelizmente, não é apenas dos Juízes, mas de quase todos os que possuem algum
poder na sociedade!"
"Os advogados vocacionados, porém,
toleram a má vontade dos que procuram dificultar o exercício da advocacia,
porque bem sabem que os mesmos, quando precisam de um profissional, correm,
pressurosos, aos nossos escritórios ou às nossas residências. E os mais
arbitrários, aqueles que mais violentam os direitos alheios, normalmente, são
os mais exigentes de franquias constitucionais!"
Também Carnelutti, em sua obra, embora
escrita já há muitos anos, fala dos excessos da imprensa, ao fiscalizar e
noticiar os julgamentos criminais. (p. 6)
Escreveu o jurista Carnelutti: "A
publicidade do processo penal, a qual corresponde não somente à idéia do
controle popular sobre o modo de administrar a justiça, mas ainda, e mais profundamente,
ao seu valor educativo, está, infelizmente, degenerada em um motivo de
desordem. Não tanto o público que enche os tribunais, ao inverossímil, mas a
invasão da imprensa, que precede e persegue o processo com imprudente
indiscrição e não de raro descaramento, aos quais ninguém ousa reagir, tem destruído
qualquer possibilidade de juntar-se com aqueles aos quais incumbe o tremendo
dever de acusar, de defender, de julgar". (pág. 20)
"Ao enfrentar o problema da prova,
Carnelutti esclarece, com sua experiência de jurista e de advogado, a
dificuldade do Juiz, para sentenciar, e o drama do acusado, mesmo quando absolvido,
por insuficiência de elementos de convicção: "Reconstruída a história, aplicada
a lei, o juiz absolve ou condena. Duas palavras que se ouve pronunciar
continuamente, nas quais é necessário descobrir o profundo significado.
Deveriam significar: o acusado é
inocente ou é culpado. O juiz também deve escolher entre o "não" do
defensor e o "sim" do Ministério Público. Mas não se pode escolher?
Para escolher deve haver uma certeza, no sentido negativo ou no sentido
positivo: e se não a tem? As provas deveriam servir para iluminar o passado,
onde primeiro era obscuro; e se não servem? Então, diz a lei, o juiz absolve
por insuficiência de provas; o que isto quer dizer? Não que o acusado seja
culpado, mas tampouco não é inocente; quando é inocente, o juiz declara que não
cometeu o fato ou que o fato não constitui delito. O juiz diz que não pode
falar nada nestes casos. O processo se encerra com um nada de fato. E parece
uma solução mais lógica deste mundo. Afinal de contas, e o acusado? Que um seja
acusado quer dizer que provavelmente, senão certamente, cometeu um delito; o
processo ou, melhor, o debate serve, por isso mesmo (p. 7) para resolver a
dúvida. Ao invés, quando o juiz absolve por insuficiência de prova, não resolve
nada: as coisas permanecem como antes: A absolvição por não ter cometido o fato
ou porque o fato não constituiu delito anula a imputação; com a solução da absolvição
por insuficiência de provas, a imputação permanece. O processo não termina
nunca. O acusado continua a ser acusado por toda a vida". (pág. 61)
"Condenado, o acusado é recolhido
ao cárcere, para cumprimento da pena que lhe foi imposta pela Justiça. Ao
aproximar-se o fim do periodo prisional, aguarda o sentenciado, com alegria, a
liberdade.
Ao sentir-se livre das grades, contudo,
sente o seu drama: não consegue emprego, em virtude de seus maus antecedentes.
Nem o Estado e nem o particular lhe facilitam uma colocação.
A pena, portanto, não termina para o
sentenciado.
Daí, escrever Carnelutti:
"Somente, na linha de raciocínio, igualmente se deve reconhecer que aquilo
do encarcerado, que conta os dias sonhando com a libertação, não é mais que um
sonho; bastam poucos dias depois que as portas da cadeia se abriram para
acordá-lo. Então, infelizmente, dia a dia, a sua visão do mundo se coloca de
cabeça para baixo: no fundo, no fundo, estava melhor na cadeia. Este lento
desfolhar-se das ilusões, este reverter de posições, este desgosto daquela que
ele acreditava ser a liberdade, este voltar o pensamento à prisão, como aquela
que é, enfim a sua casa, foi descrito egregiamente em um notável romance de
Hans Fallada; mas as pessoas não devem crer que sejam situações criadas pela
fantasia do escritor: a invenção corresponde infelizmente à realidade".
"Nem aqui seja dito, ainda uma vez,
contra a realidade que se quer de fato protestar. Basta conhecê-la. A conclusão
de havê-la conhecido é esta: as pessoas creem que o processo penal termina com
a condenação e não é verdade; as pessoas crêem (p. 8) que a pena termina com a
saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas crêem que o cárcere perpétuo seja
a única pena perpétua; e não é verdade: A pena, se não mesmo sempre, nove vezes
em dez não termina nunca. Quem tem pecado está perdido, Cristo perdoa, mas os
homens não". (pág. 77)
As misérias do processo penal residem na pena perpétua que a própria sociedade impinge a quem comete ium crime. Nesse sentido, miserável aquele que transgride as normas penais. Sanções absurdamente ilógicas lhe aguradam fora das grades.
Leiam o trechos da obra colacionados abaixo:
"O centro se propõe fazer servir a
cultura à civilização, ou seja, em palavras pobres, o saber à bondade. Deveria
ser este o destino do saber; nem sempre as coisas acontecem como deveriam
acontecer. Também o saber, como, para dar um exemplo, a energia atômica, pode
servir ao bem ou ao mal, para tornar os homens piores ou melhores, fazendo-os erguer
a cabeça em ato de soberba ou fazendo-os inclinar em ato de humildade.
O que se deveria fazer este ano a tal
escopo é raciocinar tanto quanto em torno ao processo penal. Um argumento científico,
à primeira vista, pouco dado para uma conversação com o grande público, o qual,
especialmente ao rádio, tem vontade de divertir-se. Mas está justamente aqui o
nó da questão, em tema de civilização. Divertir-se quer dizer fugir da vida
cotidiana, a qual é assim monótona, assim difícil, assim amarga, tornando
irresistível a necessidade de fuga. Não estou fora da realidade a ponto de não
reconhecer, aliás, de não provar esta necessidade. Mas aqui há uma outra saída
para a fuga, além daquela da diversão. É a saída oposta; mas diz o provérbio
que os opostos se tocam. Esta saída é o recolhimento. Depois de tudo não há
evasão mais completa que a prece, que é a forma ideal do recolhimento. Muitas
pessoas não o sabem porque não experimentaram; mas aqueles que experimentaram o
conforto da oração sabem o que pensar do divertimento e do recolhimento.
Um pouco em todos os tempos, mas no
tempo moderno sempre mais, o processo penal interessa à opinião pública. Os
jornais ocupam boa parte das suas páginas para a crônica dos delitos e dos
processos. Quem as lê, aliás, tem a impressão de que tenhamos muito mais
delitos que não boas ações neste mundo. A eles é que os delitos assemelham-se
às papoulas que, quando se tem uma em um campo, todos desta se apercebem; e as
boas ações se escondem, como as violetas entre as ervas do prado. Se dos
delitos e dos processos penais os jornais se ocupam com tanta assiduidade, é
que as pessoas por estes se interessam muito; sobre os processos penais assim
ditos célebres a curiosidade do público se projeta avidamente. E é também esta uma
forma de diversão: foge-se da própria vida ocupando-se da dos outros; e a
ocupação não é nunca tão intensa como quando a vida dos outros assume o aspecto
do drama (Caso Nardoni, por exemplo). O problema é que assistem ao processo do mesmo modo com que deliciam
o espetáculo cinematográfico, que, de resto, simula com muita freqüência,
assim, o delito como o relativo processo. Assim como a atitude do público
voltado aos protagonistas do drama penal é a mesma que tinha, uma vez, a
multidão para com os gladiadores que combatiam no circo, e tem ainda, em alguns
países do mundo, para a corrida de touros, o processo penal não é, infelizmente,
mais que uma escola de incivilização.
O
que se deseja é fazer, com estes colóquios, do processo penal um motivo de
recolhimento, em vez de divertimento. Não satisfaz argumentar que em torno
disso meditam os homens de ciência; e não têm aqui o que fazer os homens
comuns. Os juristas, certamente, o estudam ou, ainda melhor, o deveriam estudar
para fazer assim com que o seu mecanismo, delicado quantos outros mais, se
aperfeiçoe; este é um problema mais semelhante àqueles que se acredita sejam de
mecânica, que resolvem os engenheiros; e também de tal semelhança as pessoas deveriam
se dar conta. Mas porque também os homens comuns se interessam pelo processo
penal é necessário que eles não o troquem por um espetáculo cinematográfico, ao
qual se assiste para procurar as emoções. Poucos aspectos da vida social
interessam, como este, à civilização.
Não é a primeira vez que me acontece de
perceber que a civilidade, com aquelas palavras simples que se lêem assim raramente
nos livros porque os homens infelizmente são, e mais amam ser, ao contrário,
terrivelmente complicados, não é outra coisa senão a capacidade dos homens de
quererem-se bem e, por isto, de viverem em paz. Ora, o processo penal é um
banco de prova da civilização não só porque o delito, com tintas mais ou menos
fortes, é o drama da inimizade e da discórdia, mas por aquilo que é a
correlação entre quem o cometeu ou se diz que o tenha cometido e aqueles que a
ele assistem. A propósito dos exemplos, referidos pouco faz, cumpre refletir em
torno daquilo que acontecia sobre o espaldar do Circo Mássimo, aos tempos de
Roma. ou ainda acontece sobre aqueles das "Plazas de ouros" na
Espanha, México e Peru. Eu pensava - em um dia de setembro passado, durante a
projeção de um filme mexicano, no qual era admiravelmente descrito o estado de
ânimo do público bestializado contra o toureiro, porque não demonstrava um
desprezo suficiente ao perigo - quem era mais bestial, o público ou o touro?
Aquele comportamento não se pode explicar senão com um destaque entre quem
assiste e quem age, tal qual o gladiador, antes que um homem, é considerado uma
coisa. Considerar o homem como uma coisa: pode-se ter uma forma mais expressiva
da incivilidade? Mas é aquilo que acontece, infelizmente, nove entre dez vezes
no processo penal. Na melhor das hipóteses aqueles que se vão ver, fechados nas
jaulas como os animais do jardim zoológico, parecem homens de mentira ao invés
de homens de verdade. E se, todavia, alguém percebe que são homens de verdade,
parece-lhe que são homens de uma outra raça ou, quase, de um outro mundo. Este
não lembra, quando sente assim, a parábola do publicano e do fariseu, nem suspeita
que a sua é justamente a mentalidade do fariseu: eu não sou como este.
O que precisa, ao contrário, para
merecer o titulo de homem civilizado, é derrubar este comportamento; somente quando
conseguimos dizer sinceramente "eu sou como este", então
verdadeiramente seremos dignos da civilização. Para tentar provocar esta
mudança de mentalidade, procuraremos juntos compreender o que seja um processo
penal.
Assim fazendo, eu não faço, depois de
tudo, mais que recuperar o meu caminho. Também eu, como a maior parte de vocês,
desde criança, era curioso, senão mesmo apaixonado, por este espetáculo.
Relatar-lhes-ei, a propósito, um episódio dentro de instantes. Na universidade,
por uma série de circunstâncias, as quais eu compreendi mais tarde, o
providencial desígnio me desviou do penal para o direito civil. Fui assim, por
longos anos, mais um civilista que um penalista; também a minha atividade científica
foi voltada longamente sobre o terreno do direito civil. Restara-me, porém,
para com o direito e o processo penal uma atração secreta. Estava em mim uma
espécie de corrente subterrânea, a qual a um certo ponto emergiu à superfície
da terra. Seria fora de lugar recordar com detalhe as ocasiões que a vida me
oferece; o fato é que, um dia, da cátedra de processo civil fui passado àquela
do direito e depois à do processo penal. E aconteceu como acontece na montanha
quando, depois de uma longa estrada encravada entre as rochas, se alcança o
cume e finalmente se abre defronte o panorama, iluminado pelo sol.
Qualquer um se maravilharia por esta
comparação? O direito penal não está no vale antes que sobre o cume? Não é o
direito da sombra antes que o direito do sol? A verdade é que, segundo uma
admirável intuição de São Paulo, nós olhamos as coisas no espelho e por isso as
vemos de cabeça para baixo, O direito penal, sim, é o direito da sombra; mas
precisa atravessar a sombra para chegar à luz. Ao menos para mim aconteceu assim.
Cada um faz o seu caminho; e o caminho, como o semblante de cada um é diferente
do caminho dos outros. Eu, todas as vezes que me relacionei com os assim
chamados homens de bem, acreditei-me um homem de bem; e não dei um passo acima.
Foi o conhecimento dos velhacos que me fez reconhecer que não sou de fato
melhor que eles ou que estes não são de fato piores que eu; e era isto que se
queria, para um homem como eu, mais inclinado ao orgulho, senão propriamente à
soberba. Também eu, quero dizer, estive por muito tempo sobre o espaldar da
arena a olhar do alto os gladiadores, como se não fossem meus irmãos. Se
aqueles que estão lá no meio arriscando a vida fossem nossos irmãos,
correríamos para eles, não? Para separá-los e para salvá-los. Como ocorreu que,
pouco a pouco, de estranho se tornaram irmãos com precisão não sei. Em suma aconteceu;
e é isto que importa. Daquele dia se abriu diante de mim um magnífico panorama,
iluminado pelo sol.
Eu não faço, certamente, ilusão em
torno da eficácia das minhas palavras. Porém, segundo os ensinamentos daquele magnífico
filósofo, que todos deveriam ver em Cristo, ainda que queiram considerá-lo
somente como Filho do Homem, não esqueço que as palavras são sementes.
Porquanto com o meu trigo se mistura infelizmente muito joio, algum grão aqui
pode ser capaz de germinar. Por isso, sem presunção, mas com devoção, o semeio.
Não pretendo que a colheita me remunere com cem, nem com sessenta, nem com
trinta por um. Se, talvez, um só dos meus grãos germinasse, não teria semeado
em vão.
Por que os magistrados e os advogados
vestem a toga? Não parece uma roupa de trabalho, como para os médicos o avental
branco; para aquilo que terão que fazer, juízes e defensores poderiam não mudar
ou não cobrir a roupa habitual. Há, de fato, alguns países nos quais a toga não
é usada; assim se faz também entre nós, para os graus inferiores da hierarquia
judiciária. Então, de que se trata? Só de uma homenagem à tradição? Mas à
tradição por quê, se está estabelecida?
Creio que a resposta pode vir da
palavra. Certo, como disse, a toga é uma divisa, como aquela dos militares, com
a diferença que os magistrados e os advogados a usam somente em serviço, aliás
em certos atos do serviço, particularmente solenes. Na França e, sobretudo, na
Inglaterra, onde a tradição é mais estritamente observada, um advogado deve
usá-la, em todos os casos, no interior do Palácio da Justiça.
Indago-me por que a roupa dos militares
se chama divisa. Divisa vem, manifestamente, de dividir. O que teria a ver com
a veste militar a idéia da divisão? A surpresa se esvanece rapidamente se o
verbo dividir se substituisse por aquele afim, de discernir ou distinguir. É
necessário separar os militares dos civis, não? A divisa é o símbolo da
autoridade.
Tenho razão de dizer que a observação
das palavras nos haveria, rapidamente, de orientar: na corte de justiça se exercita,
por excelência, a autoridade; entende-se que aqueles que a exercitam devem-se
distinguir daqueles sobre os quais é exercida. É a mesma razão pela qual,
também, os sacerdotes vestem uma divisa; e, ainda mais, quando celebram as
funções litúrgicas, sobre esta colocam paramentos sacros.
A divisa se chama também uniforme; o
significado desta outra palavra parece, porém, contradizer o da primeira, pois que
alude a uma união ao invés de a uma divisão. Mas são, no fundo, dois
significados complementares: a toga, verdadeiramente, como a veste militar,
desune e une; separa magistrados e advogados dos leigos, para uni-los entre si.
Esta união, vejamos tem um altíssimo valor.
União dos juizes entre eles, em
primeiro lugar. O juiz, sabe-se, não é sempre um homem só; comumente, para as
causas mais graves, é formado por um colegiado; todavia se diz "o juiz"
também quando os juízes são mais de um justamente porque se unem uns com outros,
como as notas tiradas de um instrumento se fundem no acorde. A toga dos
magistrados não é, portanto, somente o símbolo da autoridade, mas também o da união,
ou seja, do vinculo que os liga entre si. E, no fundo, para nós, uma concepção
de coro, que torna o ambiente também mais solene. Veja-se, por exemplo, a Corte
de cassação em sessões conjuntas, onde se sentam, togados, pelo menos quinze
desembargadores, vindo em mente uma reunião de frades, quando cantam as
completas e as matinas, emoldurados nos assentos do coro. Quem sabe como
funciona a justiça colegiada não achará estranha esta imagem de acordo e de
coro.
Ainda mais o conceito de uniforme serve
para clarear a razão pela qual vestem a toga não somente os juízes, mas também
o ministério público e os advogados. Procuremos entender, agora, a necessidade,
ao lado dos juízes, destas outras figuras; todavia, é sabido por todos que não
são eles que julgam, porém, ao invés, também eles são julgados: acusadores e
defensores ouvirão dizer, ao final, do juiz, se estavam errados ou certos; não
é isto um "ser julgado"? Eles são, portanto, em relação ao juiz, o
outro lado da trincheira. Dir-se-á, então, se a toga é o símbolo da autoridade,
que não a deveriam usar; e ainda, se é o símbolo da união, por que enquanto o
acordo reina entre os juízes, o desacordo, ao invés, não tanto divide quanto
deve dividir o acusador do defensor? Em uma palavra, enquanto o juiz está lá
para impor a paz, o ministério público e advogados estão lá para fazer a
guerra. Justamente, no processo, é necessário fazer a guerra para garantir a
paz. Ora, esta fórmula pode ter sabor de paradoxo; mas haverá o momento no qual
poderemos saborear a verdade. A toga do acusador e do defensor significa pois que
aquilo que fazem é feito a serviço da autoridade; em aparência estão divididos,
mas na verdade estão unidos no esforço que cada um despende para alcançar a
justiça.
Em conjunto esses homens com toga dão
ao processo - e especialmente ao processo penal - uma aparência solene. Se a
solenidade é ofuscada, como ocorre infelizmente não pouco raro, por negligência
dos advogados e dos próprios magistrados, os quais não respeitam, como
deveriam, a disciplina, isto prejudica a civilização. No tribunal deveriam
estar recolhidos como na igreja. Os antigos reconheceram um caráter sagrado ao acusado
porque, diziam, era destinado à vingança dos deuses; assim eles intuiam uma
verdade profunda. O juízo, o verdadeiro, o justo juízo, o juízo que não falha
está somente nas mãos de Deus. Se os homens, todavia, se encontram na
necessidade de julgar, tenham ao menos a consciência de que fazem, quando julgam,
as vezes de Deus. A afinidade entre o juiz e o sacerdote não é desconhecida nem
entre os ateus, que falam a esse respeito de um sacerdócio civil.
A
toga, sem dúvida, convida ao recolhimento. Infelizmente hoje sempre mais, sob
este aspecto, a função judiciária está ameaçada pelos opostos perigos da
indiferença ou do clamor: indiferença pelos processos pequenos, clamor pelos processos
célebres. Naqueles a toga parece um instrumento inútil; nestes se assemelha,
lamentavelmente, a uma veste teatral. A publicidade do processo penal, a qual
corresponde não somente à idéia do controle popular sobre o modo de administrar
a justiça, mas ainda, e mais profundamente, ao seu valor educativo, está,
infelizmente, degenerada em um motivo de desordem. Não tanto o público que
enche os tribunais ao inverossímil, mas a invasão da imprensa, que precede e
persegue o processo com imprudente indiscrição e não de raro descaramento, aos
quais ninguém ousa reagir, tem destruído qualquer possibilidade de juntar-se
com aqueles aos quais incumbe o tremendo dever de acusar, de defender, de
julgar. As togas dos magistrados e dos advogados, assim, se perdem na multidão.
Sempre mais raros são os juízes que têm a severidade necessária para reprimir
esta desordem.
Quase cinqüenta anos faz, discutindo-se
em Veneza um processo por homicídio, sobre o qual convergia a mórbida curio sidade
de todos, na sessão do Tribunal do Júri, incrivelmente lotado, quando se
levantou para ser interrogada, emergindo das grades em sua estupenda figura,
Maria Nicolaevna Tamovskij, qualquer centena de senhores, que apinhavam os
locais reservados, num salto puseram-se em pé e assestaram sobre ela monóculos
e binóculos, Angelo Fuzinato, presidente insigne, exclamou com contida
indignação: "Amanhã este espetáculo incivil não se repetirá mais".
Mais que as medidas que ele soube tomar e inflexivelmente manter durante o
longo curso do processo, recordo, agora, como o ouvi pronunciar, suas
memoráveis palavras: "Este espetáculo incivil". Era o mesmo
presidente, o qual não tolerava que um advogado se comportasse no falar, no
gesticular, no vestir de modo não conforme à dignidade de seu oficio e, de outra
parte, quando percebesse, decidindo uma causa civil, ter cometido um erro, não
tinha paz até que não lhe fosse dado corrigir-se publicamente. Eis um
magistrado, que tinha entendido que valor tem o processo penal para a
civilidade de um povo. Os advogados de Veneza, para exaltarem o seu exemplo de firmeza,
de dignidade, de abnegação, ornaram com seu busto o grande átrio superior da
Corte de Apelação e eu, nesta ocasião, quero lembrar a sua figura quase para
colocar sob sua proteção aquilo que estou dizendo em torno desta mais alta
experiência de civilização, que deveria ser o processo penal.
A solenidade, para não dizer à
majestade, dos homens em toga se contrapõe o homem na jaula. Não esquecerei nunca
a impressão, que deste tive a primeira vez na qual, ainda adolescente,
ingressei na Corte de uma seção penal no Tribunal de Torino. Aqueles,
dir-se-ia, sobre o nível do homem; este, embaixo, preso na jaula, como um
animal perigoso. Sozinho, pequeno, embora grande de estatura; perdido, ainda
que procurasse ser desembaraçado, pobre, carente, necessitado...
Cada um de nós tem as suas predileções,
também em questões de compaixão. Os homens são diferentes entre eles até na
maneira de sentir a caridade. Também este é um aspecto da nossa insuficiência.
Existem aqueles que concebem o pobre com a figura do faminto, outros do
vagabundo, outros do enfermo; para mim, o mais pobre de todos os pobres é o
encarcerado. (Também tenho esse pensamento).
Digo o encarcerado, note-se, não o
delinqüente. Digo o encarcerado, como o disse o Senhor, naquele famoso sermão referido
no capítulo vinte e cinco do Evangelho de Mateus, que exerceu sobre mim um
incalculável fascínio; e até ontem, pode dizer-se, acreditei que encarcerado
ali fosse dito como sinônimo de delinqüente, mas me enganava e o engano foi um
dos tantos episódios, próprios a demonstrar que não se meditam nunca suficientemente
os sermões de Jesus Cristo.
O delinqüente, até que não seja
encarcerado, é uma outra coisa. Confesso que o delinqüente me repugna; em
certos casos me causa horror. Para mim, entre outros, o delito, o grande
delito, me aconteceu de vê-lo pelo menos uma vez, com os meus olhos. Os
briguentos pareciam duas panteras; e permaneci estático, horrorizado; contudo
bastou que visse um dos dois homens, que tinha posto por terra o outro com um
golpe mortal, enquanto os policiais, providencialmente acudiam, metendo-lhe as
algemas, para que do horror nascesse a compaixão. A verdade é que, apenas
algemado, a fera se tornou um homem.
As algemas, também as algemas são um
símbolo do direito; quiçá, a pensar-se, o mais autêntico de seus símbolos, ainda
mais expressivo que a balança e a espada. É necessário que o direito nos ate as
mãos. E justamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, que é,
segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito. "Quid
quid latet apparebit", repete ele a este propósito, com o "Dies
irae": tudo aquilo que está escondido virá à luz. Aquilo que estava
escondido, na manhã na qual vi o homem
lançar-se contra o outro, sob a aparência de fera, era o homem; tão logo ataram
seus pulsos com a corrente, o homem reapareceu: o homem, como eu, com o seu mal
e com o seu bem, com as suas sombras e com as suas luzes, com a sua
incomparável riqueza e a sua espantosa miséria. Então, a compaixão nasce do
horror.
Não estou, agora, falando, a propósito
do delinqüente, do mal e do bem, da sombra e da luz, da miséria e da riqueza, deixando-me
arrastar pela literatura? Repreenderam-me tantas vezes, ainda por último, na
ocasião de uma infeliz batalha pela abolição do calabouço, uma coisa que
qualquer um termina como uma ingenuidade. Oxalá fosse tal! A verdade é que
Francisco, justamente porque melhor do que qualquer outro interpretou Cristo,
desceu mais ao fundo que qualquer outro no abismo do problema penal. Francisco,
só Francisco compreendeu, beijando o leproso, o que quis dizer Jesus com o
convite a visitar os encarcerados. Os sábios, os quais continuam a considerar a
pena, segundo uma fórmula célebre, como um mal que se impõe ao delinqüente pelo
mal que ele causou, ignoram ou esquecem aquilo que Cristo disse a propósito do
demônio que não serve para expulsar o demônio: não é com o mal que se pode
vencer o mal. Já Virgilio, antes que baixasse aos homens a luz de Cristo, havia
cantado: "omnia vincit amor", o amor somente é sempre vitorioso. Não
se pode fazer uma nítida divisão dos homens em bons e maus. Infelizmente a
nossa curta visão não permite avistar um germe do mal naqueles que são chamados
de bons, e um germe de bem, naqueles que são chamados de maus. Essa curta visão
depende de quanto o nosso intelecto não está iluminado de amor. Basta tratar o
delinqüente, antes que uma fera, como um homem, para descobrir nele a vaga
chamazinha de pavio fumegante, que a pena, ao invés de apagar, deveria reavivar.
Poucas vezes vi uma face pavorosa como
aquela de um homicida, que defendi, anos faz, diante de um Tribunal do Júri na
extrema Calábria: tinha matado dois homens, premeditadamente, ferindo-os pelas
costas com dois tiros de pistola; não vi naquele rosto sombreado por um
capacete de cabelos corvinos nenhum alvor de luz. Defendia junto com ele também
seu irmão, acusado de havê-lo instigado a matar. No colóquio que tive com ele,
apenas chegado lá embaixo, lhe devia dizer que infelizmente para ele não havia
esperança; tudo o mais se podia tentar, com as atenuantes genéricas, de
converter o calabouço em trinta anos de reclusão. Ele me ouviu impassível;
depois disse: "não se ocupe de mim, advogado; não importa; eu sou um homem
perdido; pense para salvar meu irmão, que tem nove filhinhos". Então, um
raio de amor iluminou a sua fronte. Não era a sua riqueza aquele amor fraterno,
que o fazia esquecer até seu terrível destino?
A verdade é que o germe do bem em
qualquer um de nós, não só nos delinqüentes, está aprisionado. Há aqueles que
têm mais, há aqueles que têm menos; mas nenhum de
nós tem todo o
espaço que deveria ter. Todos, em uma palavra, estamos na prisão, uma prisão
que não se vê, mas não se pode não sentir (analogia ao Phanótico de Jeremias
Bhentam). Aquela angústia do homem, que constitui o motivo de uma corrente da
filosofia moderna, de grande notoriedade e de indiscutível importância, não é
outra coisa que o sentido da prisão. Cada um de nós é prisioneiro enquanto
esteja fechado em si, na solicitude por si, no amor de si. O delito não é mais que
uma explosão de egoísmo, na sua raiz. O outro não importa; o que importa,
somente, é o consigo. Somente abrindo-se para com outro o homem pode sair da
prisão. E basta que se abra com outro, para que entre pela porta aberta a graça
de Deus.
(...) A jaula ou as
algemas, dizíamos, são um símbolo do direito, e por isso revelam a natureza e a
desventura do homem. O homem acorrentado, ou o homem na jaula é a verdade do
homem; o direito não faz mais que revelá-la. Cada um de nós está fechado em uma
jaula que não se vê. Não nos parecemos com os animais porque estamos na jaula,
mas estamos na jaula porque nos parecemos com os animais. Ser homem não quer
dizer não ser, mas poder não ser animal. Este poder é o poder de amar.
Quem teria imaginado estas coisas
quando vi, ainda criança, um homem na jaula, na corte escura do Tribunal de Torino?
Quem teria imaginado que o espetáculo daquele homem na jaula eu não haveria de
esquecer nunca? É curioso como certos fatos, que parecem insignificantes, se
inserem indelevelmente na fita da nossa memória. Fato é que ainda agora, depois
de haver visto tantos, o homem encarcerado tem um fascínio misterioso para mim.
É esta a experiência que me abriu o caminho da salvação.
(...)
A minha felicidade foi que eu vi tantas
vezes, no curso da vida, estenderem para mim aquela mão aberta, na espera da dádiva.
As pessoas imaginam o advogado como um técnico, ao qual se requer um trabalho
que quem o pede não teria capacidade de fazer por si mesmo, no mesmo plano do
médico ou do engenheiro; é verdade também isto, mas não é toda ela; o restante da
verdade é descoberto, sobretudo, pela experiência do encarcerado.
O encarcerado é, essencialmente, um
necessitado. A escala dos necessitados foi traçada naquele sermão de Cristo ao qual
já tive ocasião de acenar, referido no capitulo vinte e cinco de Mateus:
famintos, sedentos, despidos, vagabundos, enfermos, encarcerados; uma escala
que conduz o meio animal da essencial necessidade física à necessidade
essencialmente espiritual; o encarcerado não tem necessidade nem de alimento,
nem de roupas, nem de casa, nem de medicamentos; o único remédio, para ele, é a
amizade. As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao
advogado é a dádiva da amizade antes de qualquer outra coisa.
O nome mesmo de advogado soa como um
grito de ajuda. "Advocatus, vocatus ad", chamado a socorrer. Também o
médico é chamado a socorrer; mas só ao advogado se dá este nome. Quer dizer que
há entre a prestação do médico e a do advogado uma diferença que, não voltada
para o direito, é todavia descoberta pela rara intuição da linguagem. Advogado
é aquele, ao qual se pede, em primeiro plano, a forma essencial de ajuda, que é
propriamente a amizade.
E da mesma forma a outra palavra
"cliente", a qual serve a denominar aquele que pede ajuda, reforça
esta interpretação: o cliente, na sociedade romana, pedia proteção ao patrono;
também o advogado se chama patrono. E a derivação de patrono, de
"pater", projeta sobre a correlação a luz do amor.
Aquilo que atormenta o cliente e o
impele a pedir ajuda é a inimizade. As causas civis e, sobretudo, as causas
penais são fenômenos de inimizade. A inimizade ocasiona um sofrimento ou, pelo
menos, um dano como certos males, os quais, tanto mais quando não são
descobertos pela dor, minam o organismo; por isso da inimizade surge a
necessidade da amizade; a dialética da vida é assim. A forma elementar da
ajuda, que se procura na guerra, é a aliança. O conceito de aliança é a raiz da
advocacia.
O
acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas
mais graves, lhe parece que esteja contra ele todo mundo. Não raramente, quando
o transportam para a audiência, é recebido pela multidão com um coro de imprecações;
não raramente explodem contra ele atos de violência, contra os quais não é
fácil protegê-lo. Imaginem o estado de ânimo de Caterina Eort que, quando se
apresentou defronte aos juízes, todos a chamavam de fera? Precisa não tanto
pensar nestes casos, quanto procurar colocar-se nas vestes destes desgraçados
para compreender a sua pavorosa solidão e, com esta, a sua necessidade de
companhia. Companheiro, de "cumpane", é aquele que divide conosco o
pão. O companheiro se coloca no mesmo plano daqueles aos quais faz companhia. A
necessidade do cliente, especialmente do acusado, é isto: de um que se sente ao
lado dele, sobre o último degrau da escada.
A essência, a dificuldade, a nobreza da
advocacia é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado.
As pessoas não compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e
riem, zombam e escarnecem. Não é um mister, que goza da simpatia do público,
aquela do Cirineu. As razões, pelas quais a advocacia é objeto, no campo
literário e também no campo litúrgico, de uma difundida antipatia, não são outras
senão estas. Perfino Münzoni, quando teve que retratar um advogado, perdeu a
sua bondade e a Igreja deixou introduzir no hino de Santo Ivo, patrono dos
advogados, um verso afrontoso. As coisas mais simples são as mais difíceis de
entender.
Deixemos claro: a experiência do
advogado está sob o signo da humilhação. Ele veste, porém, a toga; ele
colabora, entretanto, para a administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo;
não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado.
Ele está sujeito ao juiz, como está sujeito o acusado.
Mas justamente por isto a advocacia é
um exercício espiritualmente salutar. Pesa a obrigação de pedir, mas
recompensa. Habitua-se a suplicar. O que é mais senão um pedir a súplica? A
soberba é o verdadeiro obstáculo à suplicação; e a soberba é uma ilusão de
poder. Não há nada melhor que advocacia para sanar tal ilusão de potência. O
maior dos advogados sabe não poder nada frente ao menor dos juízes; entretanto,
o menor dos juízes é aquele que o humilha mais. É obrigado a bater à porta como
um pobre. E não está nem escrito sobre a porta: "pulsate et aperietur
vobis". Não raramente se bate em vão. A experiência se faz mais dolorosa e
mais salutar. Pensava-se que tivesse razão. Tanto estudo, tanto suor, em vez...
Para entender, é preciso conhecer estes momentos.
Os romanos denominavam a atividade do
advogado no processo com o verbo "postular". Dizem os léxicos que
esse verbo significa pedir aquilo que se tem direito de ter. E é isto que
agrava o peso de pedir. Não se deveria ter necessidade de pedir aquilo que se
tem direito de ter (para isso que existe o direito). Em conclusão é necessário submeter-se
o juízo justamente a outros, ainda quando tudo permite crer que não haja razão
de atribuir a outro uma maior capacidade de julgar.
(...)
O encarcerado, as pessoas não sabem e
menos ainda ele próprio o sabe, é faminto e sedento de amor. A necessidade da
amizade provém da sua desolação. Quanto maior é a desolação, maior a necessidade
de profunda e fecunda amizade. Inconcebivelmente ele pede aquilo que é
indispensável a fim de que o defensor possa cumprir o seu mister. O que o
defensor deve possuir antes de tudo, a tal fim, é o conhecimento do acusado: não,
como o médico, o conhecimento físico, mas o conhecimento espiritual.
Conhecer o espirito de um homem quer
dizer conhecer sua história; e conhecer uma história não é somente conhecer a
sucessão dos fatos, mas encontrar o fio que os liga. Neste sentido a história é
uma reconstrução lógica, não uma exposição cronológica dos acontecimentos. Tudo
isto não é possível se o protagonista não abre, pouco a pouco, sua alma. Este tipo
de protagonistas, que são os delinqüentes, têm, por definição, a alma fechada.
Ao mesmo tempo em que pedem a amizade, opõem a desconfiança e a suspeição.
Impregnados de ódio, vêem ódio também onde não há mais que o amor. São como animais
selvagens, que só com infinita delicadeza e paciência se podem domesticar.
Qualquer um dirá que eu vejo assim a
advocacia sob o perfil da poesia. Pode ser. A poesia do seu ministério é
qualquer coisa que um advogado sente em dois momentos da vida: quando veste
pela primeira vez a toga ou quando, se mesmo não a depôs, está para depô-la: ao
amanhecer ou ao entardecer. Ao amanhecer, defender a inocência, fazer valer o
direito, fazer triunfar a justiça: esta é a poesia. Depois, pouco a pouco caem as
ilusões, como as folhas da árvore, depois do fulgor do verão; mas, através do
emaranhado dos ramos cada vez mais despidos, sorri o azul do céu. Agora não
estou mais seguro nem de haver defendido a inocência, nem de haver feito valer
o direito, nem de ter feito triunfar a justiça; contudo, se o Senhor me fizer renascer,
recomeçarei. Malgrado os insucessos, as amarguras, os desenganos, o balanço é
ativo; se destes faço a análise me dou conta de que a ocasião capaz de suprir
todas as minhas deficiências consiste justamente na humilhação de dever-me
encontrar, ao lado de tantos desgraçados, contra os quais se lança o vitupério
e se açula o desprezo, sobre o último degrau da escada.
No topo da escada está o juiz. Não há
um mister mais alto que o seu, nem uma mais imponente dignidade. Ele é colocado,
na Corte, sobre a cátedra; e merece esta superioridade.
A linguagem dos juristas exalta o juiz
com uma palavra, (Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz) sobre cujo significado
profundo os juristas mesmos, e tanto mais os filósofos, deveriam prestar, mas
não prestam, a atenção. Nós dizemos que frente ao juiz estão as partes. Denominam-se
partes os sujeitos de um contrato: por exemplo, o vendedor e o comprador, o
locador e o locatário, o sócio e o outro sócio; e, por igual, os sujeitos de
uma lide. O credor quer fazer-se pagar e o devedor, que não quer pagar; o
proprietário que quer a devolução de sua casa e o inquilino, que quer continuar
a habitá-la; e, enfim, se chamam também assim os sujeitos do contraditório,
isto é, daquela disputa que se desenrola entre os dois defensores nos processos
civis ou entre o ministério público e o defensor nos processos penais. Estes,
tantos quantos se denominam assim, porque são divididos e a parte provém,
justamente, da divisão. Cada um tem um interesse oposto àquele do outro. O
vendedor quer entregar pouca mercadoria e embolsar mais dinheiro, enquanto o
comprador quer exatamente o contrário; cada um dos sócios quer ficar com a
parte do leão; dos dois defensores, se um vence, o outro perde; cada qual puxa
a água para o seu moinho.
Os juristas usam por isto o nome de
parte, mas o significado de parte é muito mais profundo; na parte convergem o ser
e o não ser; cada parte é em si mesma e não é a outra parte. Mas, se é assim,
todas as coisas e todos os homens são partes; uma rosa é uma rosa e não uma
violeta; um cavalo é um cavalo e não um boi; eu sou eu e não sou você. E esta
de ser o homem nada mais que uma parte é uma descoberta de inestimável valor.
Por isto os filósofos deveriam dar mais crédito à linguagem dos juristas e
prestar-lhes maior atenção.
Se, entretanto, aqueles que estão
defronte ao juiz para serem julgados são partes, quer dizer que o juiz não é
uma parte. De fato os juristas dizem que o juiz é supraparte: por isso ele está
no alto e o acusado embaixo, sob ele; um na jaula, o outro sobre a cátedra.
Semelhantemente o defensor está embaixo, em cotejo com o juiz; ao invés, o
ministério público, ele está ao lado. Isto constitui um erro, que com uma maior
compreensão em tomo da mecânica do processo terminará por se corrigir.
Entretanto, também ele, o juiz, é um homem e, se é um homem, é também uma
parte. Esta, de ser ao mesmo tempo parte e não parte, é a contradição, na qual
o conceito do juiz se agita. O fato de ser o juiz um homem, e do dever ser mais
que um homem, é o seu drama.
Um drama representado com insuperável
maestria no Evangelho de João; e ainda fico estupefato, quando me retoma a
memória aquela sublime representação, que Benedetto Croce, seja do ponto de
vista puramente estético, dela tivesse assim pouco compreendido a grandeza de
havê-lo chamado um “quadrinho fabuloso’: “Jesus depois foi ao monte das
Oliveiras, mas ao amanhecer estava no templo, e todo o povo acorria a Ele; e Ele
se pós sentado e ensinava. Nessa ocasião, os escribas e fariseus conduziam uma
mulher que foi surpreendida em adultério; e, postando-a no meio, diziam a Ele:
esta mulher foi apanhada em ato de adultério. Ora, Moises, na lei, nos tem
determinado que tais
mulheres sejam apedrejadas. Tu, que nos dizes? E isto perguntavam para
colocá-lo à prova e ter meio de acusá-lo. Mas Jesus se inclinou e com o dedo se
pôs a escrever sobre a terra. Insistindo aqueles a interrogá-lo, Ele se
levantou e respondeu: quem é de vós sem pecado atire a primeira pedra” (João,
VIII, 1).
É de ficar sem respiração. “Quem é de
vós sem pecado atire a primeira pedra”! Necessita, para sentir-se digno de
punir, estar sem pecado; portanto somente o juiz está acima daquele que é
julgado. E uma vez que o pecado não é mais que o nosso não ser, aquilo que
deveremos ser precisa ser em plenitude, sem deficiências, sem sombras, sem
lacunas; em suma, necessita não ser parte para ser juiz. Mas que quadrinho
fabuloso! O problema do juiz, o mais árduo problema do direito e do Estado, é
proposto aqui com uma clareza gelificante.
Certamente, assim, entenderam os Escribas
e os Fariseus que tinham tentado confundir o Mestre, uma vez que o Evangelho
continua narrando que Jesus “de novo se inclinou, e escrevia na terra”.
Observava Ele, absorto, os efeitos de suas palavras. Naquela ocasião Escribas e
Fariseus “se foram um após o outro, começando dos mais velhos até os últimos; e
permaneceu somente Jesus e a mulher, que estava do meio”. (João, VIII, 8)
Nenhum homem, se pensasse no que ocorre
para julgar um outro homem, aceitaria ser juiz. Contudo, achar juízes é necessário.
O drama do direito é isto. Um drama que deveria estar presente a todos, dos juízes
aos judicados no ato no qual se exalta o processo. O Crucifixo que, graças a
Deus, nas cortes judiciárias pende ainda sobre a cabeça dos juízes, seria
melhor se fosse colocado defronte a eles, a fim de que ali pudessem com
freqüência pousar o olhar, este a exprimir a indignidade deles; e não fosse
outra, a imagem da vítima mais insigne da justiça humana. Somente a consciência
da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno.
A lei tentou todos os expedientes possíveis
para garantir a dignidade do juiz. O mais óbvio entre estes consiste no juízo colegiado,
uma vez que o julgar um outro homem exige que quem julga seja mais do que
aquele que é julgado, o que se faz por mais homens colocados juntos. À primeira
vista o expediente parece ilusório; uma dignidade não se obtém com a soma de mais
indignidades. Mas a verdade é que uma coisa é a soma de mais juízes, outra a
união deles. Não se trata no colégio de juntar um juiz ao outro como os adendos de uma
adição; mas de “vertere plures in unum’, dir-se-ia em latim, isto é, de
fazê-los tornarem-se um só. Tem de meio misterioso o conceito de acordo, chave
da música e chave do direito; misterioso porque ainda não sabemos, e talvez não
saberemos jamais, como acontece quando entre dois homens ocorre verdadeiramente
a união e, portanto, se forma a unidade, assim correspondendo a cada um a ser o
outro, mas não o não ser, o bem, mas não o mal. Pode parecer que a associação
de delinqüentes contradiga essa afirmação; mas refletindo aqui se percebe que,
se os delinqüentes são mantidos juntos pelo medo, trata-se de uma falsa união
como seria aquela de um feixe de galhos amarrados juntos, que nunca formam um
galho só; ou se tem entre eles o afeto, e isto é, em qualquer caso, um germe do
bem, o qual pode sempre encontrar-se envolto e escondido sob a casca do mal.
(...)
Poderia também dizer que é questão de
fé no homem a questão penal. Mas a fé no homem se conquista somente amando o
homem. Mais que ler muitos livros eu queria que os juízes conhecessem muitos
homens; se fosse possível, sobretudo santos e canalhas, aqueles que estão sobre
o mais alto ou o mais baixo degrau da escada. Parecem imensamente distantes;
mas sobre o terreno do espírito acontecem coisas estranhas. Aqui, assim pouco
se quer para um canalha virar santo. Cristo, com o exemplo do ladrão
crucificado, nos tem ensinado! Após tudo basta que o canalha se envergonhe de
ser canalha; e pode também bastar que um santo se glorifique de ser santo para
perder a santidade. Estas são realmente as coisas essenciais; mas não se
encontram em nenhum manual de psicologia. Antes se aprende na igreja ou nas
penitenciárias. Curiosa também esta aproximação, não? Entre a igreja e a
penitenciária, qualquer coisa como colocar juntos o inferno e o paraíso. Mas o
erro, o tremendo erro está no crer que aqueles que estão recolhidos na penitenciária
sejam malditos.
(...)Acusador e defensor são, em última análise, dois raciocinadores: constroem e expõem as razões. O ministério deles é raciocinar. Mas um raciocínio que permita respostas obrigatórias. Um raciocínio de um modo diverso daquele do juiz. Não é talvez muito fácil entender; mas se isto não se entende, não se compreende o processo; e não basta que compreendam os juristas, porque este é o ponto sobre o qual os leigos podem ter em torno do processo as impressões falsas e nocivas à civilização. Raciocinar é, em palavras simples, colocar as premissas e tirar as conclusões. O acusado confessou ter matado, logo matou. Na linha lógica, primeiro vêm as premissas e depois as conclusões. Assim procede o raciocinador imparcial. Mas o defensor não é um raciocinador imparcial. E é isto que escandaliza as pessoas. Malgrado o escândalo, não é porque não deve ser imparcial. E porque não é imparcial o defensor, não pode e não deve ser imparcial nem o seu adversário. A parcialidade deles é o preço que se deve pagar para obter a imparcialidade do juiz, que é, pois, o milagre do homem, enquanto, conseguindo não ser parte, supera a si mesmo. O defensor e acusador devem procurar as premissas para chegarem a uma conclusão obrigatória.
Tudo isso pode parecer absurdo.
Entretanto a chave do processo está aqui. Lamentável se o juiz se contentasse
em raciocinar assim: o acusado confessou ter matado, logo matou. Temos,
entretanto, casos nos quais um homem confessa o delito que não cometeu. Temos
visto pais se acusarem para salvar o filho e filhos submeterem-se ao mesmo
sacrifício para salvar o genitor. Isto tanto é verdade, e não somente pela
razão ora apontada, que até o Código Penal pune aqueles que denunciam contra a
verdade de serem culpados de um delito. Isto quer dizer que, também
quando aqui temos provas límpidas da culpa ou da inocência, antes de condenar
ou absolver, é necessário continuar as investigações até que sejam exauridos
todos os meios(isso não aconteceu no caso Nardoni). Mas, para fazer
isto, o juiz deve ser ajudado; sozinho não conseguiria. O seu ajudante natural
é o defensor, este amigo do acusado, que, naturalmente, tem o interesse de
procurar todas as razões que possam servir para demonstrar a inocência. O
defensor é, então, um raciocinador com respostas obrigatórias, isto é, um
raciocinador parcial: um raciocinador que traz a água para seu moinho.
É claro, porém, que, desta maneira, o
defensor é um colaborador precioso para o juiz, entretanto, perigoso, por causa
da sua parcialidade. E como compeli-lo a ser útil, porém inócuo? Contrapondo-lhe
aquele outro raciocinador parcial no sentido inverso, que se chama ministério
público e deveria chamar-se, mais exatamente, acusador. No ordenamento atual do
processo penal, o ministério público não é essencialmente um acusador; ao
contrário, é concebido diferentemente do defensor, como um raciocinador
imparcial; mas aqui, digo, há um erro de construção da máquina, que também por
isso funciona mal; de resto, nove vezes sobre dez, a lógica das coisas leva o
ministério público a ser aquilo que deve ser: o antagonista do defensor.
Desenvolve-se assim, sob os olhos do
juiz, aquilo que os técnicos chamam o “contraditório’, e é, realmente, um
duelo: o duelo serve para o juiz superar a dúvida; a propósito disto é interessante
notar que também duelo, como dúvida, vem de “duo”. No duelo se personifica a
dúvida. É como se, na encruzilhada de duas estradas, dois bravos se combatessem
para puxar o juiz para uma ou para outra. As armas, que servem para eles combaterem
são as razões. Defensor e acusador são dois esgrimistas, os quais não raramente
fazem uma má esgrima, mas talvez ofereçam aos apreciadores um espetáculo
excelente.
Também aqueles que não apreciam, como
acontece nos torneios, acabam por se apaixonarem por este jogo. Esta é também
para o público uma das mais fortes atrações no processo penal. Mas digamos,
ainda, é também qualquer coisa que dá ao processo penal o sabor de escândalo; e
justamente por isso as pessoas o apreciam. E propriamente por isso os advogados
adquirem a fama de fabricantes de sofismas. Em boa parte a sátira, que cresce
excepcionalmente vigorosa contra nós, é devida a uma maligna interpretação
deste fenômeno. Não se compreende que, quando o advogado fosse um raciocinador
imparcial, não somente trairia o próprio dever, mas contrariaria a sua razão de
ser no processo e o mecanismo deste sairia desequilibrado.
Sem dúvida, isto de duas verdades, a
verdade da defesa e a verdade da acusação, é um escândalo; mas é um escândalo do
qual o juiz tem necessidade a fim de que não seja um escândalo o seu juízo. E
isto não só porque o juiz tem necessidade de que lhe sejam apresentadas todas
as razões para encontrar a razão; e mais, se não apresentam mais é em aparência
complicado, mas na realidade simplificado o seu cumprimento. Sob este aspecto,
o duelo entre defensor e acusador parece o choque de duas pedras, do qual sai
faísca. As razões, já havíamos dito, estão para a razão como as cores para a
luz; as arengas do defensor e do acusador assemelham-se a uma girândola de
cores; mas girando velozmente se fundem na luz. De qualquer maneira, a vantagem
que o juiz tira não é somente do intelecto. A verdade é que o contraditório o
ajuda justamente porque é um escândalo: o escândalo da parcialidade, o
escândalo da discórdia, o escândalo da Torre de Babel. A repugnância à
parcialidade se converte para o juiz na necessidade de superá-la, ou seja, de
superar-se; está nesta necessidade a salvação do juízo.
Eis que esta tentativa de análise do
processo penal no seu momento mais tecnicamente delicado permite, talvez,
escolher um resultado, que tem de per si uma certa importância para a
civilização. Poder-se-ia falar, neste ponto, de reabilitação dos advogados. A
do advogado é quiçá uma das figuras mais discutidas no quadro social; talvez a
mais tormentosa. Não foi nunca, entre outros, mesmo nos momentos convulsionados
da história, proposta supressão dos médicos ou dos engenheiros, mas dos advogados
sim. Alguma vez, por fim, se conseguiu suprimi-los; depois foram imediatamente
ressurgidos. No fundo, o protesto contra os advogados é o protesto contra a
parcialidade do homem. A ver-se bem, eles são os cireneus da sociedade:
carregam a cruz por um outro, e esta é a nobreza deles. Se me pedissem para a
Ordem dos Advogados um lema, proporia o virgiliano “sic vos non vobis”. Somos
aradores do campo da justiça e não recolhemos os frutos.
A tarefa do processo penal está no
saber se o acusado é inocente ou culpado. Isto quer dizer, antes de tudo, se aconteceu
ou não aconteceu um determinado fato: um homem foi ou não foi assassinado, uma
mulher foi ou não foi violentada, um documento foi ou não foi falsificado, uma
jóia foi ou não foi levada embora?
Necessitaria saber o que é um fato,
antes de tudo. São palavras que se usam pela intuição; que se compreendem aproximadamente;
mas precisa refletir-se sobre. Um fato é um pedaço de história; e a história é
a estrada que percorrem, do nascimento à morte, os homens e a humanidade. Um
pedaço de estrada, portanto. Mas da estrada que se fez, não da estrada que se
pode fazer. Saber se um fato aconteceu ou não quer dizer, portanto, voltar
atrás. Este voltar atrás é aquilo que se chama fazer a história.
Não é mistério que no processo, e não
só no processo penal, se faz a história. Digo: não é um mistério para os
juristas, os quais aqui têm há tempo voltado a atenção; mas, pode surpreender o
homem comum, ao qual é dirigido o meu discurso. Isto acontece porque nós
estamos acostumados a considerar a história dos povos, que é a grande história;
mas há também a pequena história, a história dos indivíduos; aliás não haveria
aquela sem esta, como não haveria a corda sem os fios, que estão torcidos entre
si. Quando se fala de história, o pensamento percorre as dificuldades que se
apresentam para reconstituir o passado; mas são, tendo em conta a medida, as
mesmas dificuldades que se devem
superar no processo.
Com isto de pior: o delito é um pedaço
de estrada, cujos rastros quem a percorreu procura destruir. Acontece o
contrário daquilo que ocorre, normalmente, para o contrato: quando um compra,
tanto mais se a coisa tem um valor relevante, conserva ao máximo, mediante um
documento, a prova de ter comprado; quando rouba, destrói, quanto melhor pode,
as provas de ter roubado.
As provas servem, exatamente, para
voltar atrás, ou seja, para fazer, ou melhor, para reconstruir a história. Como
faz quem, tendo caminhado através dos campos, tem que percorrer em retrocesso o
mesmo caminho? Segue os rastros de sua passagem. Vem em mente o cão policial, o
qual vai farejando aqui e ali, para seguir com o faro o caminho do malfeitor
perseguido. O trabalho do historiador é este. Um trabalho de atenção e
paciência, sobretudo, para o qual colaboram a policia, o ministério público, o
juiz instrutor, os juízes de audiência, os defensores, os peritos. Prescindindo
das crônicas dos jornais, os livros policiais e o cinema têm, não tanto
informado, como inflamado o público sobre este trabalho. A utilidade desta
literatura, sob o aspecto da civilização, está no ter difundido a impressão, para
não dizer a experiência, da dificuldade da procura, por causa da falibilidade
das provas. O risco é errar o caminho. E o dano é grave, quando se erra a
estrada, também se a história é feita só nos livros. Porque, se bem que os
historiadores não se dão conta e os filósofos ou, ao menos, alguns filósofos,
contestam, não se retoma à via percorrida senão para encontrar as vias a percorrer;
seja como for, é tanto mais notório quando o passado se reconstrói para se
decidir o destino de um homem.
Mas há também o reverso da medalha; e
qual reverso. A culpa não é toda da literatura policial; entenda-se. Esta,
aliás, pode ser um sintoma antes que a causa de um fenômeno derivante de causas
mais profundas. Quiçá esta se deveria procurar naquela tendência ao
divertimento, a qual tem tanto lugar na crise da civilização, que estamos
atravessando. Em uma palavra, é a história mesma, que advém do meio de
diversão. A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo,
de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim a descoberta do delito, de dolorosa
necessidade social, se tomou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam
como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes,
jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos
oficiais de policia e aos juízes instrutores; e, o que é pior, ai fazem o
trabalho deles. Cada delito desencadeia uma onda de procura, de conjunturas, de
informações, de indiscrições. Policiais e magistrados de vigilantes se tornam
vigiados pela equipe de voluntários prontos a apontar cada movimento, a
interpretar cada gesto, a publicar cada palavra deles. As testemunhas são
encurraladas como a lebre de cão de caça; depois, muitas vezes sondadas,
sugestionadas, assalariadas. Os advogados são perseguidos pelos fotógrafos e
pelos entrevistadores. E muitas vezes, infelizmente, nem os magistrados logram
opor a este frenesi a resistência, que requereria o exercício de seu mister
austero.
Esta degeneração do processo penal é um
dos sintomas mais graves da civilização em crise. É até difícil representar
todos os danos devidos à falta daquele recolhimento que a nenhum outro dever é
necessário quanto aquele que deve ser demonstrado. Não o mais grave, mas
certamente o mais visível é aquele que resguarda o respeito ao acusado. A
Constituição italiana proclamou solenemente a necessidade de tal respeito
declarando
que o acusado
não deve ser considerado culpado até que não seja condenado com uma sentença
definitiva. Esta é, porém, uma daquelas normas, as quais servem somente a
demonstrar a boa fé daqueles que a elaboraram; ou, em outras palavras, a
incrível capacidade de iludir-se da qual são dotadas as revoluções. Infelizmente
a justiça humana é feita assim, que nem tanto faz sofrer os homens porque são
culpados quanto para saber se são culpados ou inocentes. Esta é, infelizmente,
uma necessidade à qual o processo não se pode furtar, nem mesmo se o seu
mecanismo fosse humanamente perfeito. Santo Agostinho escreveu a este propósito
uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais cruéis, está abolida,
ao menos sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura. Até um certo
ponto, dizia, não se pode fazer por menos; mas a assim chamada civilização moderna
tem exasperado de modo inverossímil e insuportável esta triste conseqüência do
processo. O homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras, como se
dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimento às feras. A fera, a indomável
e insaciável fera, é a multidão.
O artigo da Constituição, que se ilude de garantir a incolumidade do acusado, é
praticamente inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de
imprensa. Logo que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o
seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O individuo, assim, é feito em pedaços. E o individuo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que
deveria ser protegido.
Mas há um outro individuo no centro do
processo penal, ao lado do imputado: a testemunha. Os juristas, friamente,
classificam a testemunha, junto com o documento, na categoria das provas. Aliás
é uma certa categoria das provas. Esta frieza deles é necessária como a do
anatomista que secciona o cadáver; mas ai de nós se esquecermos que, enquanto o
documento é uma coisa, a testemunha é um homem; um homem com o seu corpo e com
a sua alma, com seus interesses e com as suas tentações, com as suas lembranças
e com os seus esquecimentos, com a sua ignorância e com a sua cultura, com a
sua coragem e com o seu medo. Um homem que o processo coloca em uma posição incômoda
e perigosa, submetido a uma espécie de requisição para utilidade pública,
afastado de seus afazeres e sua paz, pesquisado, espremido, inquirido,
suspeitado. Não conheço um aspecto da técnica penal mais preocupante do que aquele
que resguarda o exame, aliás, em geral, o tratamento da testemunha. Também
aqui, de resto, a exigência técnica termina por se transformar em uma exigência
moral: se devesse resumi-la em uma fórmula, colocaria no mesmo plano o respeito
da testemunha e o respeito do acusado. No centro do processo, em última
análise, não está tanto o imputado ou a testemunha quanto o individuo.
Todos sabemos que a prova testemunhal é
a mais infiel entre as provas; a lei a cerca de muitas formalidades, querendo prevenir
os perigos; a ciência jurídica chega ao ponto de considerá-la um mal
necessário; a ciência psicológica regula e inventa até instrumentos para a sua
avaliação, ou seja, para discernir a verdade da mentira; mas a melhor maneira
para garantir o resultado sempre foi e será sempre a de reconhecer na
testemunha um homem e de atribuir-lhe o respeito que merece cada homem.
(...)
Todavia as pessoas estão persuadidas de que aquela que produz estes fenômenos seja uma civilização em progresso. E pode-se considerar, com confiança, qualquer jurista ou qualquer filósofo, os quais constroem sua extraordinária teoria como artifício da história de massas, sustentando que a figura do historiador recolhido, prudente, absorto no pesar as provas como o químico com as suas balanças e com as suas provetas, é uma figura de outros tempos, querida somente pela nostalgia de algum ancião octogenário, como este velho jurista que procura fazer conhecer uma verdade, a cuja descoberta dedicou toda a vida.
O juiz, foi dito, é um historiador
também ele, com a única diferença entre a grande e a pequena história. A que o juiz
faz, ou melhor, reconstrói, é a pequena história; pode parecer que o seu dever
seja mais leve daquele que resguarda a grande história. Eu me indago, porém, se
de verdade é mais fácil manejar o microscópio que o telescópio. A diferença
entre o povo e o individuo não é aquela entre o macrocosmo e o microcosmo? E um
aspecto da nossa cegueira aquele de dar muita importância à distinção entre as
grandes e pequenas coisas; depois de tudo, a experiência do valor do átomo
deveria fazer-nos desenganados.
De qualquer maneira, a tarefa de
historiador do juiz não está somente no reconstruir um fato: quando, em um
processo, por homicídio, se está certo de que o acusado, com um tiro de pistola,
matou um homem, não se sabe ainda dele tudo quanto precisa saber para dever
condená-lo - O homicídio não é somente ter matado, mas ter querido matar. Isto quer
dizer que o juiz não deve limitar a sua indagação somente ao exterior, ou seja,
as correlações do corpo do homem com o resto do mundo, mas deve descer, com a
indagação, na sua alma. E quando se diz alma, ou espírito, ou psique, como hoje
preferem as pessoas cultas, alude-se a uma região misteriosa, da qual não
conseguimos falar senão por metáfora. E preciso ir com cautela na indagação
sobre este terreno. O perigo mais grave é o de atribuir ao outro a nossa alma, ou seja,
de julgar aquilo que ele sentiu, compreendeu, quis, segundo aquilo que nós
sentimos, compreendemos, queremos(diversas vezes fiz isso, por isso estou no
erro. Julgando os outros. Isso não é bom).
Certamente, não se pode julgar por
intenção senão através da ação, isto é, aquilo que o homem quer daquilo que faz.
Mas de tudo aquilo que faz, não de uma parte somente. A ação do homem não é um
único ato, mas todos os atos juntos. Aqui o conceito que nos pode orientar é o
do individuo exatamente porque exprime a idéia de indivisibilidade; indivíduo
não quer dizer outra coisa senão indivisível. Um homem se diz individuo por
significar, em uma palavra, que não se pode fazer a sua história por parte.
Aquilo que o homem quis não se pode conhecer senão através daquilo que o homem
é; e aquilo que o homem é se conhece somente por toda a sua história. O ego de cada
um de nós é um centro, para o qual se dirigem e no qual se unificam todos as
nossos atos. Cada um de nossos atos se reporta a este principio. Fisicamente o
ato pode ser considerado em si; psicologicamente não. A vontade de um ato é o
seu princípio; e o princípio não se encontra senão ao fim da história de um
homem. Isto quer dizer, em uma palavra, que quando o juiz tem reconstruído o
fato não percorre senão a primeira etapa de um caminho; de lá desta etapa o
caminho prossegue, porque lhe resta conhecer a vida inteira do acusado.
Esta, que eu espero haver enunciado com
bastante clareza, é uma verdade desde já reconhecida pelas leis penais
modernas. Há um artigo do nosso código, o qual obriga o juiz a ter em conta a
conduta e a vida do réu, antecedentes ao delito a conduta contemporânea e
subseqüente ao delito; as condições de vida individual, familiar e social do
réu”. Esta é uma norma que conhecem somente os juristas; mas também o homem
comum a deve conhecer porque também este deve saber que a lei penal declara
solenemente dever-se fazer no processo qualquer coisa que, ao invés, não se faz
e não se pode fazer. Não deveria resultar para ele um escândalo; mas, a fim de
que os escândalos possam ser úteis ao bem, devem ser conhecidos. Este é justamente
o fim que a voz de San Giorgio se propõe.
Aquilo que a lei quer é precisamente
que o juiz refaça inteiramente toda a história do acusado. O que supõe,
primeiro de tudo, que o juiz tenha o tempo e a paciência suficientes de se
fazer relatá-la para ele; depois deverá verificar o relato e deve habituar-se a
assim fazer. Basta enunciar esta necessidade para que venha à luz o paradoxo,
aliás, o absurdo do processo penal.
Em realidade o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo; e se escutasse por resumo não teria ainda escutado a história verdadeira, porque a história verdadeira é feita também pelas pequenas coisas as quais importam, para a consciência de um homem, muito mais que as coisas grandes; e já adverti de resto que a diferença entre o grande e o pequeno não é mais que um efeito da limitação dos sentidos do intelecto do homem.
Tanto mais o mister de historiador, que
a lei obriga ao juiz, é impossível enquanto escutar a história do acusado
exige, em primeiro lugar, que seja superada a desconfiança, primeira condição
de um relato sincero; e a desconfiança não se vence senão com amizade, que
entre o juiz e o acusado, na maior parte dos casos, é um sonho- Se se
acrescenta que o relato, naturalmente, — assim se deveria verificar a indagação
— assumiria em qualquer processo dimensões impressionantes, é fácil concluir
que o dever de historiador do juiz penal, enquanto se dirige para o desenvolvimento
espiritual, que se coloca acima dos delitos, é, na melhor das hipóteses,
grosseiramente aproximativo.
Não necessita crer que o ambiente dos
juristas tenha permanecido insensível a este escândalo. De há muito os juristas
se aperceberam de que, para o juízo penal, precisa, além do fato, conhecer o
homem; e conhecer o homem não ocorre sem reconstruir-lhe a história. A
colocação, que eu lembrei pouco faz, foi introduzida por mérito como argumento
da ciência no código penal italiano. E se têm apercebido os juristas,
entretanto, de que os meios dos quais o juiz dispõe para conhecer o homem são
de fato inadequados. Por isso, ultimamente, se propagou um movimento voltado a
procurar-lhe ajuda de um experto em psicologia. Também isto será, certamente,
um passo à frente, quando se puder fazer; mas não convém atribuir à psicologia
capacidade e méritos maiores do que aqueles que ela possui. Os limites da psicologia
são os limites da ciência, isto é, depois de tudo, os limites das análises;
porquanto a matéria tenha sido discutida até os seus mais íntimos recantos, não
é desta maneira que se pode entender o segredo da vida; e o segredo do espírito
é o segredo da vida. Tudo aquilo que o psicólogo pode fazer é alguma coisa de
análogo àquilo que faz o anatomista sobre o corpo do homem; mas o espírito é
essencialmente unidade. Não o caminho da psicologia, mas o da amizade pode
conduzir o homem ao coração de outro homem. E o caminho da amizade ao juiz é,
infelizmente, proibido.
Estas coisas eu lhes digo não para
incitá-los a desprezar o processo penal e os homens que o arquitetaram ou que
manobram o seu mecanismo. Estes homens tiveram e ainda têm os seus erros e eles
não devem ser escondidos; mas também não se deve exagerar; sobretudo devemos
reconhecer que são pobres também eles, como nós, e as coisas perfeitas ninguém
as sabe fazer. O escândalo não está, no fundo, nos homens, mas nas coisas. É o
processo penal, em si, uma pobre coisa, à qual é destinada uma tarefa muito
alta para ser cumprida. Isto não quer dizer que não se possa fazer por menos;
mas se devemos reconhecer a sua necessidade, deve ser reconhecida a par a sua
insuficiência. Nisto está verdadeiramente uma condição da civilidade, a qual
exige que seja tratado com respeito, não somente o juiz, mas também o julgado
e, por fim, o condenado. Devemos contentar-nos, infelizmente, com a história do
acusado como o juiz a pode fazer; mas não devemos edificar sobre esta o nosso
juízo e, sobretudo, o nosso desprezo.
Tanto mais que a história do individuo,
como o juiz a pode fazer, pela própria natureza do processo penal, é uma história
irremediavelmente incompleta. Um homem é, porém, em si a sua história. E sua
história é composta não somente do seu passado, mas também do seu futuro. Eu
sou não só aquilo que tenho sido, mas também aquilo que serei. O presente é
síntese do passado e do futuro (porque o presente é futuro do passado e, ao
mesmo tempo, passado do futuro). Isto é tão verdadeiro que o próprio código penal
determina que o juiz tenha em conta a conduta do réu assim precedente como
subsequente ao delito. Mas o juiz deve, por força, trazer a história tanto ao
momento do delito como ao momento do julgamento; já o que vem de nós não pode ter
em conta porque não pode adivinhar; todavia por mais desconhecido, também o
futuro é real. O juízo, para ser justo, deveria ter em conta não somente o mal
que um teria feito, mas também o bem que fará; não só da sua capacidade para
delinqüir, mas também da sua capacidade para se redimir. Mas este julgamento,
que para ser justo deveria ser inteiro, só deveria ser feito depois que o homem
tivesse completado a sua vida. Não se pode tirar as somas de um balanço, dizia
um homem de negócios, senão ao fim do exercício. Tal é a razão pela qual o
processo de beatificação é feito pela igreja sobre o morto, não sobre o vivo.
Há sempre tempo, até que se tenha fôlego, para que um canalha se tome santo ou
um santo, canalha. Vale o exemplo evangélico do ladrão crucificado. Ao invés,
ao contrário do processo de beatificação, o processo penal deve ser feito
durante a vida. Na melhor das hipóteses não se pode atribuir ao julgamento, que
se pronuncia, senão o valor provisório: esta pessoa, por hora, é um canalha a
menos que não se torne um santo; também o ladrão crucificado, até que não o
tenham pregado sobre a cruz, até que não tenha pronunciado, agonizante, a
sublime palavra do arrependimento, era um canalha; mas com aquela palavra
resgatou toda a sua maldade.
Estamos de acordo, espero, sobre o
valor destas minhas reflexões para o bem da sociedade. Não tenho nenhuma
intenção de desacreditar o processo penal além dos limites nos quais a sua
imperfeição poderia ser eliminada com um pouco mais de atenção e boa vontade.
Por outro lado, a civilização exige que não se lhe atribua um valor que tanto
não tem quanto não pode ter. O acusado deveria ser considerado com o mesmo
respeito que se dá ao doente nas mãos do médico ou do cirurgião. Uma comparação,
se feita entre o enfermo e o encarcerado, foi feita por Jesus: não nos devemos
esquecer dela, por que, depois, o Juiz faz a história? Aquilo que foi, foi;
‘factum, infectum fieri nequit”, diziam uma vez; ninguém pode fazer tornar
atrás o tempo. Ninguém, nem mesmo Deus, disse um dia, em polêmica comigo, nada
menos que um devotadíssimo religioso; e a mim pareceu blasfêmia, porquanto
inconcebível. (Para Deus nada é impossível. Tudo é possível ao que crê). Mas
deixemos de lado este argumento, porque a tornar-se atrás, perderei o fio. Água
passada não molha mais; uma grande tentação inspira este provérbio: deveras a
desesperança. Não há então remédio para o passado? Se assim não fosse, por que
se faria o processo penal? Um obscuro intuito tem sempre guiado os homens a
crer que se tenha remédio. O delito é uma desordem e o processo serve para
restaurar a ordem. Esta é a intuição. Mas como se faz a ordem em lugar de
desordem?
A verdade intuída é que o remédio para
o passado está no futuro. Não outra que esta verdade intuída guia os homens para
reconstruir a história. Uma vez esta intuição teria encontrado a sua fórmula
quando se dizia que a história é mestra da vida. Hoje não se diz mais; e parece
um passo à frente no caminho do saber que, como todos os caminhos que conduzem
para cima, tem os seus falsos planos e os seus traçados descendentes. Certo é
que, tendo perdido, para assim dizer, o contato entre o passado e o futuro, nós
nos temos distanciado ao invés de estarmos avizinhados do topo - Quiçá uma das
características da crise é justamente esta que chamarei o desinteresse do
futuro. Existiu, por fim, um filósofo, venerado pelos italianos e não por eles somente,
o qual negou ao homem a possibilidade de prever. Poucas responsabilidades da
filosofia são mais graves do que essa. A cegueira desses pretensos condutores
de homens, os quais não sabem que o único problema do homem é o problema do
futuro, faz virem à mente as palavras do Evangelho: “como pode um cego guiar um
outro cego sem que um e outro se precipite no abismo?”. Não há outro modo para
resolver o problema do futuro do homem, que não seja o de voltar ao passado; somente
a observação do passado pode permitir lhes entender, como em um espelho, o
segredo do futuro. Se estes tivessem sabido desmontar, como faz um mecânico com
uma máquina, o prodigioso mecanismo do pensamento, teriam compreendido, ao menos,
qual seja a virtude da memória guardada do passado, da qual a inteligência alça
vôo para o futuro.
Não obstante, se há um passado que se
reconstrói para fazer a base do futuro, é o do homem nas grades no processo penal.
Não há outra razão para atingir o delito senão aquela de impor-lhe a pena. O
delito está no passado, a pena está no futuro. Diz o juiz: devo saber aquilo
que você foi para estabelecer aquilo que será. Foi um delínqüente; será um
encarcerado. Fez sofrer; sofrerá. Não soube usar sua liberdade; será recluso.
Eu tenho nas mãos a balança; a justiça quer que quanto pese seu delito, tanto
pese sua pena.
Neste ponto, sucede alguma coisa que
complica o problema. Isto depende do fato de que, aos delitos, não basta
reprimi-los, necessita preveni-los. O cidadão deve saber antes quais serão as
conseqüências dos seus atos para poder regular-se. Ocorre também para os homens
alguma coisa que os apavora, para salvá-los da tentação, como se assustam os
pássaros com o espantalho, a fim de que não comam os grãos. A balança, assim, passa
das mãos do juiz para as do legislador (bom, teríamos que mexer na concepção
dos pesos e contra-pesos. Se o legislador recrudesce a lei, o faz pelo clamor
social. Porém, a teoria do Estado de que um Poder deve fiscalizar o outro não
deve ser deixada de lado, visto que assim é o estado Democrático de direito. A
culpa está nas pessoas e no legislador, sobretudo). O peso se faz antes que o
ladrão roube, a fim de que se abstenha de roubar. Mas, se antes se faz, faz-se
não sobre o fato, mas sobre o tipo. O tipo é um conceito, não um fato; uma
abstração, não uma realidade; alguma coisa de previsão; não alguma coisa de
acontecimento. Ora, o prever é, a um tempo, mais ou menos ver: mais do que ver,
porque se acrescenta ao ver; menos, porque não se vê tudo aquilo que se verá
quando terá acontecido. E, em suma, um ver indistinto; distinguem-se as grandes
linhas; mas o acontecimento reserva, sempre, também quando seja conforme a
previsão, alguma coisa de novo.
O Direito Penal se debate, então, neste
dilema: ou se coloca a balança nas mãos do juiz e então, se o juiz é justo, o peso
será justo. mas o direito não serve, ou serve pouco à função preventiva; ou se
reserva a balança ao legislador, e então age a prevenção no sentido de que o
cidadão saiba antes à qual conseqüência se expõe desobedecendo à lei, mas o
peso pode não ser justo, porque o que se coloca sobre um dos pratos é o tipo, não
o fato; e o tipo, dissemos, é uma abstração, não uma realidade. Entre os dois
lados do dilema, a solução não pode ser mais do que um compromisso: para salvar
cabra e couves, não se salva nem a cabra nem as couves.
Por isso, em primeiro lugar, a técnica
penal recorre à multiplicação dos tipos. Tem uma espécie de mostruário sempre mais
numeroso, que se coloca à disposição do juiz, a fim de que ele esteja em
condições de encontrar o tipo que se assemelha mais ao fato na sua
concretização. E uma vez que a vida social e com essa a delinqüência se
complica sempre mais, também o código penal, aliás, junto com as leis penais
(as quais, enfim, não são mais todas contidas no código, pois hoje a maior
parte fica de fora), toma-se um espécie de labirinto. O juiz, naturalmente, deverá
saber se mover nesse labirinto. Por isso deve ser um jurista. Isto não é sem
perigo, tanto é verdade que os tribunais do júri (tal é o nome que se dá aos
colégios judiciários chamados a julgar os grandes delitos) são compostos em
parte, aliás na menor, de juristas, e o restante por leigos do direito. O
perigo está precisamente nisto: em que, acostumados ao tipo, o juiz jurista
esquece o homem que vive, em suma, em um mundo abstrato em vez de um mundo
concreto; que troca os espantalhos com os homens e os homens com os
espantalhos.
O homem qualquer assistindo a um
processo tem a impressão incômoda, por vezes angustiante, deste destaque da vida;
quando ai percebe a disputa em tomo da interpretação desse ou daquele outro
artigo do código penal ou do código de processo penal, é inevitável que
pergunte se esse mecanismo tão intrincado e complicado não seria uma diatribe
engendrada pelas pessoas que perderam o dom da simplicidade e do bom senso. Muito
da má fama dos advogados e, em geral, dos homens da lei é devida a este
mal-estar e a este desgosto. Determina-se, em tal circunstância, uma ruptura
entre o povo e a justiça, ou melhor, a administração da justiça, que é
certamente nociva à civilização. Não há nada a fazer para restabelecer a
confiança senão observar que a justiça que se pode obter com o trabalho do juiz
no processo é aquele pouco de justiça, que a nós pobres homens, limitados e
acabados como somos, é consentida; não há nada mais perigoso que cultivar as
ilusões em torno desse ponto fundamental do problema da civilização.
O direito não pode fazer milagres e o
processo ainda menos. Entretanto, até que as leis sejam obedecidas, tudo vai
ficar bem ou, pelo menos, ficam encobertos os vícios; é a desobediência que os
faz aparecer. O processo foi dito, e o processo penal mais que outro descobre
todas as contradições do direito, o qual se empenha como pode para superá-las.
E agora veio à luz o contraste sobre o tema da determinação da pena, entre o juiz e o legislador; aos fins da
repressão, com essa determinação, ela deveria pertencer ao juiz; aos fins da
prevenção, ao legislador.
Daí vem à tona um mecanismo empírico
que ata as mãos do juiz, mas não muito: a lei, ao invés de uma pena fixa,
estabelece, quando muito, um mínimo ou um máximo, que sinalizam os limites da
liberdade do juiz: uma espécie de liberdade vigiada; em qualquer caso uma meia
medida, que não consegue nem resolver, nem esconder a contradição. Mas não há o
que fazer. E a eterna contradição entre o um e o múltiplo, entre a qual se
agita a vida do homem.
Desta
contradição, que o homem não é capaz de resolver, é viciado também o direito e,
sobretudo, o processo. Ao ponto no qual o juiz teve êxito para cumprir o seu
dever de historiador (e vimos quais dificuldades se opuseram ao seu
adimplemento), quando reconstruiu o passado e deve a este adequar o futuro,
quando insta sobre ele a mais grave das exigências da justiça, que consiste
nesta adequação, no momento no qual tenha necessidade para tal fim de toda a
liberdade, eis que a lei lhe ata as mãos constrangendo-o a julgar, em vez de um
homem, um espantalho.
Esta situação restrita do drama denúncia,
ainda uma vez, a pobreza da justiça humana. Nós temos, entre outros, casos nos
quais é claro que bastou o processo, ou melhor, o tanto de processo
desenvolvido para reconstruir a história, com todos os seus sofrimentos, as
suas aflições, as suas vergonhas, para assegurar o futuro do culpado no sentido
de que ele compreendeu o seu erro e não só o tenha compreendido, mas que aquele
peso de sofrimento, de aflição, de vergonha o tenha redimido e o resto do
processo, o seu prolongamento com a condenação e a execução dessa não é mais que
uma desgraça importuna para o indivíduo e para a sociedade; se o juiz fosse
livre, estes seriam os casos nos quais diria como Jesus para a adúltera: ‘vá e
não peque mais’(tenho que fazer isso, não pecar mais). Mas ele tem infelizmente
as mãos atadas. Não necessita protestar contra a lei. De acordo sobre isto. Não
se pode protestar contra a necessidade; mas não se pode esconder que o direito
e o processo são uma pobre coisa e é isso, verdadeiramente, que é necessário
para fazer avançar a civilização (tudo bem, mas o que Carnelutti sugere quando
assevera que o processo penal é pobre, porque o juiz julga o acusado como
espantalho fosse, posto que a pena já é pré-determinada? Não acredito em falhas
do mecanismo da pena. A dosimetria da pena é estudada pelos penalistas.
Contudo, se há um entrave. O juiz deve julgar pelo bom senso e não pelo
positivismo exacerbado, é o que penso).
Construída a história, aplicada a lei,
o juiz absolve ou condena. Duas palavras que se ouve pronunciar continuamente,
nas quais é necessário descobrir o profundo significado.
Deveriam significar: o acusado é
inocente ou é culpado. O juiz também deve escolher entre o “não’ do defensor e
o “sim” do Ministério Público. Mas não se pode escolher? Para escolher deve
haver uma certeza, no sentido negativo ou no sentido positivo: e se não a tem?
As provas deveriam servir para iluminar o passado, onde primeiro era obscuro; e
se não servem?
Então,
diz a lei, o juiz absolve por insuficiência de provas; o que isto quer dizer?
Não que o acusado seja culpado, mas tampouco é inocente; quando é inocente, o
juiz declara que não cometeu o fato ou que o fato não constitui delito. O juiz
diz que não pode falar nada nestes casos. O processo se encerra com um nada de fato.
E parece a solução mais lógica deste mundo.
Afinal de contas, e o acusado? Que um
seja acusado quer dizer que provavelmente, senão certamente, cometeu um delito;
o processo ou, melhor, o debate serve, por isso mesmo, para resolver a dúvida.
Ao invés, quando o juiz absolve por insuficiência de provas, não resolve nada:
as coisas permanecem como antes. A absolvição por não ter cometido o fato ou
porque o fato não constituiu delito anula a imputação; com a solução da absolvição
por insuficiência de provas, a imputação permanece.
O
processo não termina nunca. O acusado continua a ser acusado por toda a vida.
Não é um escândalo também isto? Nada menos que uma confissão da impotência da
justiça. Mas pode a justiça confessar-se impotente? E também, se é tal, não é
justa a confissão? Não seria pior se o juiz declarasse a inocência ou a culpa
quando não está convicto nem por uma, nem por outra? A sentença se reduziria a
uma mentira. O processo se encontra, assim, em um beco sem saída, do qual não é
possível sair. Ou mentir ou declarar falência: uma via intermediária não há. E
não há como reprovar nem a lei, nem os homens: tal é a necessidade e o que se
pode dizer é somente que, também por este lado, o processo penal é uma pobre
coisa; e precisamos extrair-lhe as conseqüências quanto ao comportamento a ter
para com aqueles que não são culpados.
Tanto mais grave a deficiência, que
agora veio às claras, que, enquanto o acusado não é culpado, a declaração da
sua inocência é a única maneira para reparar o dano que injustamente lhe foi
ocasionado. Se, na verdade, ele não cometeu o delito, quer dizer não somente
que se deve ser absolvido, como também que não deveria ter sido acusado. Não
teria sido malícia da parte de quem o teria suspeitado; teria sido um daqueles
erros, aos quais infelizmente nós, homens, estamos irreparavelmente sujeitos; a
culpa seria das circunstâncias que teriam enganado a polícia, o ministério
público, o juiz instrutor; mas em suma um erro aconteceu; a sentença da
absolvição por não ter cometido o fato ou por inexistência de delito contém não
somente a certeza da inocência do acusado, mas junto, a confissão do erro
cometido por aqueles que o arrastaram para o processo. Por pouco que se
reflita, parece claro que os erros judiciários, também de grande porte, são
muito mais numerosos do que se pensa. Todas as sentenças de absolvição, excluídas
aquelas por insuficiência de provas, implicam a existência de um erro
judiciário. As pessoas quando ouvem falar de erro judiciário pensam no pobre
Padeirinho, isto é, no erro descoberto depois da condenação, durante a expiação
e por fim quando o condenado cumpriu a pena. Esses são certamente os casos mais
dolorosos; mas fazem parte de uma multidão sem paralelo mais numerosa. Com as
estatísticas nas mãos, pois que todos os provimentos de absolvição se resolvem na
constatação de um erro judiciário, viriam à tona números de arrepiar. As
pessoas, quando o juiz absolve, especialmente nos processos célebres,
glorificam a justiça; e têm razão porque é sempre uma sorte e um mérito se
aperceber do erro; mas o erro causou os seus danos e quais estes danos? Quem os
repara? Não se deve confundir, certamente, a culpa com o erro profissional; isto
quer dizer que os erros não são atribuídos à imperícia, à negligência e à
imprudência, mas, ao invés, à insuperável limitação do homem, não dando lugar a
responsabilizar quem o comete; mas é justamente esta irresponsabilidade que
marca um outro ponto a desmerecer o processo penal. Fato é que esse terrível mecanismo,
imperfeito e imperfectível, expõe um pobre homem a ser pintado a largos traços
frente ao juiz, inquirido, e não raramente detido, arrancado de sua família e
seus afazeres, prejudicado, para não dizer arruinado perante a opinião pública,
para depois não se ver nenhuma culpa de quem, seja também sem culpa, tenha
turbado e desconsertado a sua vida. São coisas que acontecem, infelizmente; e,
ainda uma vez, não há como protestar; mas não deveríamos pelo menos reconhecer
a miséria do mecanismo, que é capaz de produzir estes desastres, e também é
incapaz de não produzi-los? Menos mal quando o erro é reconhecido relativamente
cedo, antes do debate, com a absolvição por parte do juiz instrutor ou, tanto
mais, ao fim do debate de primeiro grau; mas não são raros os casos nos quais,
depois de uma primeira condenação, a absolvição chega mais tarde, ao fim de uma
via-crúcis, que não raramente dura anos: aquele diplomata italiano, que foi
acusado de ter matado a mulher na Tailândia, passou quatorze anos detido
preventivamente antes que, com a absolvição pronunciada, tempo faz, pela corte
de apelação de Bolonha, tenha sido reconhecida sua inocência.
E, portanto, a hipótese da absolvição,
a qual descobre as misérias do processo penal, que, em tal caso, tem somente o mérito
da confissão do erro. Um erro do qual as pessoas não se apercebem, e não
somente os homens comuns, mas por fim até os expertos do direito. Não conheço
um jurista, com exceção de quem lhes fala, que tenha advertido que cada
sentença de absolvição é a descoberta de um erro. Deste modo, ou por
negligência ou por falso pudor, escondem-se aquelas misérias do processo penal
que devem, ao invés, ser conhecidas e toleradas, a fim de que se faça a
avaliação que se deve fazer da justiça humana.
Quando, ao invés, o juiz está convicto
da culpa do acusado, então condena. Mas se tivesse também ele errado? A ameaça
do erro pende como a espada de Damocles, no processo. Ecoa, no fundo de cada
sentença, a divina advertência “não julgareis”. A lei faz aquilo que pode para
garantir a sentença contra o erro. Não se trata de submeter a uma critica as
medidas que a lei toma a esse respeito. E nem de descrevê-las: as pessoas sabem,
mais ou menos, que a sentença de primeiro grau pode ser revista pelo juiz de
apelação e a sentença de apelação, pela corte de cassação; e não seria de fato
útil explicar este mecanismo complicado e nem fazer revelarem os seus graves e,
depois de tudo,
irremediáveis defeitos. Não se deve desconhecer que, malgrado esses defeitos, o
mecanismo até um certo ponto serve para garantir o processo contra o ele mesmo:
até ao ponto, mais ou menos, em que lhe é possível; mas garantia absoluta não
se pode dar. Também o juízo dos juízes superiores está sujeito como o dos juízes
inferiores a este perigo, tanto mais que, se de uma parte eles se encontram, em
relação àqueles, em uma posição vantajosa, da outra, especialmente quanto ao
juiz historiador, os meios dos quais disponham são ainda mais imperfeitos;
basta pensar que no processo de apelação, via de regra, não são reexaminados os
testemunhos e o juízo se forma sobre aqueles processos verbais, os quais não
dão e não podem dar aos testemunhos senão uma representação mutilada, por vezo
deformada, por vezo até por fim incompreensível.
Todavia, a um certo ponto, precisa
acabar. O processo não pode durar eternamente. E um fim por exaurimento, não por
atingir a finalidade. Um fim que se assemelha à morte antes que ao acabamento.
Precisa contentar-se, necessita resignar-se. Os juristas dizem que até um certo
ponto se faz a coisa julgada, e querem dizer que não se pode ir mais além. Mas
dizem também ‘res iudicata pro veritate habetur’. A coisa julgada não é a verdade,
mas se considera como verdade. Em suma é um substituto da verdade. Estas
coisas, que os juristas sabem, também os outros as devem saber. Depois de tudo
é fácil que, com aquele aparato solene da cátedra, da toga, da jaula, do
penacho dos guardas atrás do presidente, do ministério público de acusação, dos
advogados que defendem, do público que assiste tenso e apaixonado, estes se
iludam que aquela que vem à tona pelos lábios dos juízes, ao fim, seja a
verdade. E pode também ser que seja a verdade; por outro lado ninguém sabe;
assim como pode ser, pode também não ser.
No júri, um dia, falando sobre o
encarcerado, defini-o com essas palavras: “um que pode ser culpado”. Eu tive a
impressão de que os ouvintes não ficaram congelados. Mas são as coisas que se
devem saber, para o bem da sociedade. Todavia absolvição ou condenação, o
processo termina quando o juiz diz a última palavra.
Também esta é uma impressão, ao menos
em parte, falaciosa. Termina, certamente, com a absolvição; quero dizer quando
a absolvição se toma coisa julgada. E deixemos de lado se é justo, assim; é
sempre possível que mais tarde venham à tona novas provas, das quais resultam
com certeza que o acusado absolvido era culpado: por que, neste caso, ele deva
gozar a impunidade, é uma coisa que pouco se compreende; mas não é uma crítica
à lei que quero fazer desta tribuna.
Ao invés, no caso de condenação, o
processo não termina de fato. Entretanto, quando se trata de condenação, não é nunca
dita a última palavra: o acusado absolvido, mesmo se surgem novas provas contra
ele, está agora, bem ou mal, assegurado; mas o condenado, em certos casos
(deixemos de lado, também, aqui as criticas à lei, que é, sobre este tema,
muito imperfeita), tem direito à revisão, ou seja, com muita cautela, a retomar
o processo.
Entretanto, também a prescindir desta
revisão, a condenação não significa ponto final ao processo: ela quer dizer, ao
contrário e diferentemente da absolvição, que o processo continua. Somente a
sua sede se transfere do tribunal para a penitenciária. Aquilo que se deve
compreender é que também a penitenciária está compreendida com o tribunal no
palácio da Justiça. É uma idéia esta mais que clara, também na mente dos juristas;
mas deve ser aclareada no interesse da sociedade. Aliás aqui se apresenta o nó
do problema, na linha da civilização.
Acontece para as pessoas, incluindo
também os juristas, quando da condenação, alguma coisa de análogo àquilo que ocorre
quando um homem morre: o pronunciamento da condenação, com o aparato que todos
conhecem, mais ou menos, é uma espécie de funeral; terminada a cerimônia,
depois que o acusado sai das jaulas e o recebem em custódia os policiais, recomeça
para cada um de nós a vida cotidiana e, pouco a pouco, não se pensa mais no
morto. Sob um certo aspecto, pode-se assemelhar a penitenciária a um cemitério;
mas se esquece de que o condenado é um sepultado vivo. Precisa-se pouco para
compreender que, ao invés do cemitério, deveria ser um hospital; mas basta ter
compreendido isto para se descobrir o erro de quem pensa que, com a condenação,
o processo esteja terminado. A condenação, vendo-se bem, não é nada mais que
uma diagnose: não é também uma diagnose o juízo? O médico, quando, ao fim de
sua indagação, admite a existência da doença, pronuncia também ele uma
sentença, aliás uma condenação; também a ele acontece, como ao juiz, de
absolver ou condenar, segundo reconhece no paciente um são ou um doente. Mas o
que vem à mente que o médico com a diagnose teria cumprido o seu dever? O juiz,
com a sentença de condenação, faz a diagnose, prescreve a cura: também a cura,
então, é obra de justiça; ou tal obra deve deter-se quando foi acordado que uma
pessoa é um delinquente que não se preocupa por fazer o quanto é possível a fim
de tomar-se um homem honesto?
A penitenciária é, verdadeiramente, um
hospital, cheio de enfermos de espírito, ao invés que do corpo. e, alguma vez, também
do como; mas que singular hospital! No hospital, a priori, o médico, quando
percebe que a diagnose está errada, corrige-a e retifica a terapia. Na
penitenciária, ao contrário, e proibido assim fazer. Não é um hospital, onde
não se tenham médicos e enfermeiros: o diretor da penitenciária e os outros, que
o auxiliam na direção, são mais que desprovidos daquelas condições, que podem
servir para a cura de seus enfermos; e muitas vezes eles atendem com
compreensão, com paciência e por fim até com abnegação. Por outro lado, para
esses médicos, a diagnose do juiz é imposta com autoridade, em função da coisa julgada;
a prova do progresso da doença não importa. O juiz disse dez, vinte, trinta
anos e dez, vinte, trinta devem ser, ainda que a prova demonstre que é muito ou
pouco, porque também, antes do período estabelecido, o doente recuperou a
saúde, ou também, ao contrário, o período transcorreu inutilmente.
Dizem, facilmente, que a pena não serve
somente para a redenção do culpado, mas também de alerta aos outros, que poderiam
ser tentados a delinqüir e, por isso, os deve intimidar; e não é um discurso
este de se fazer pouco caso; mas pelo menos dele não deriva a habitual
contradição entre a função repressiva e a função preventiva da pena: aquilo que
a pena deveria ser para beneficiar o culpado não é aquilo que deveria ser para beneficiar
os outros; não há entre esses dois aspectos da instituição possibilidade de
conciliação. O menos que se pode concluir é que o condenado que, por achar-se
redimido antes do término fixado pela condenação, permanece na prisão porque
deve servir de exemplo aos outros, sendo submetido a um sacrifício por interesse
dos outros, está na mesma situação do inocente, sujeito à condenação por um
daqueles erros judiciários, que nenhum esforço humano conseguirá eliminar.
Bastaria para não assumir em comparação com a massa dos condenados aquele ar de
superioridade que infelizmente, mais ou menos, o orgulho, assim profundamente
enraizado no recesso da nossa alma, inspira a cada um de nós; ninguém
verdadeiramente sabe, em meio a eles, quem seja ou não seja culpado e quem
continua ou não continua a ser tal.
Todavia, também se a pena deve servir
de intimidação aos outros, deveria junto servir para redimir o condenado; e redimi-lo
quer dizer curá-lo da sua enfermidade. A tal propósito se deveria saber em que
consiste a sua enfermidade. Aqui as coisas a se dizerem são as mais simples e
as mais amargas: enquanto a medicina do corpo alcançou progressos maravilhosos,
a medicina do espírito está ainda em um estado infantil. Cristo, até agora,
sobre este tema, pregou no deserto. Colocando o detento, junto ao enfermo,
sobre a escala com os pobres, Ele disse claro que a delinqüência é uma forma de
pobreza: ao faminto falta a comida; a água, aos sedentos; a roupa, ao desnudo; a
casa, ao vagabundo; a saúde, ao doente. O que falta então ao encarcerado?
Cristo, convidando-nos a visitá-lo, disse claro: a visita é um ato de amizade.
E assim simples. O delito não é um ato, ao contrário, de inimizade? Parece
impossível que o estudo do delito tenha apresentado tantas dificuldades e
tantas complicações. Como não relembrar as outras palavras de Cristo. “Te
agradeço, ó Pai, porque estas coisas revelaste aos pequenos e as escondeste aos
sábios”? Necessita ser pequeno para compreender que o delito é devido a uma
falta de amor. Os sábios procuram a origem do delito no cérebro; os pequenos
não esquecem que, mesmo como disse Cristo, os homicídios, os furtos, as
violências, as falsificações vêm do coração. E ao coração do delinquente, que,
para saná-lo, deveremos chegar. Não há outra via para chegar, senão aquela do
amor. A falta de amor não se preenche senão com amor. Amor com amor se paga”. A
cura da qual o encarcerado precisa é uma cura de amor.
E o castigo? A pena, contudo, deve ser
um castigo. De acordo; mas o castigo não é situação incompatível com o amor. O
pai que não usa o bastão não ama o filho, está dito na Bíblia. O castigo, para
o coração de pai, requer mais amor que o perdão, justamente porque, castigando
o filho, castiga a si mesmo; não há coração de pai que não sangre pelo
sofrimento do filho. O amor pelo condenado não exclui de fato a severidade da
pena. Sob este aspecto, por sorte, não são contraditórios no instituto da pena;
mas somente uma batalha para lutar, em nome da civilidade.
A batalha não é para a reforma da lei
mas para a reforma do costume. A lei, especialmente com as modificações mais
recentes, faz pelo condenado aquilo que pode. Não precisa pretender tudo do
Estado. Infelizmente este é um dos hábitos que cada vez mais se consolidam
entre os homens; e também este é um aspecto da crise da civilização. Sobretudo
não se deve pedir ao Estado aquilo que o Estado não pode dar. O Estado pode impor
aos cidadãos o respeito, mas não pode infundir o amor.
O Estado é um gigantesco robô, do qual
a ciência pode fabricar o cérebro mas não o coração. Cabe ao individuo
ultrapassar os limites, aos quais deve deter-se a ação do Estado. Até um certo ponto
o problema do delito e da pena deixa de ser um problema judiciário para ser
somente um problema moral. Cada um de nós está comprometido, pessoalmente, na
redenção do culpado, e por isto somos responsáveis. A dar-lhes, em última
análise, tal consciência, e a fazê-los sentir tal responsabilidade são
dirigidas estas discussões. Do principio ao final, enquanto se desenvolve o
processo para a averiguação do delito, antes da absolvição e da condenação, o
comportamento de cada um de nós pode ter uma influência notável para auxiliar o
seu curso e, em cada caso, para diminuir o sofrimento que o processo ocasiona.
Cada um de nós, em outras palavras, é um colaborador invisível dos órgãos da
justiça. Mas, até a condenação, pode ser suficiente o respeito.
Depois da condenação não é mais
suficiente. O condenado é o pobre, por excelência, na sua nudez. Não há um
necessitado mais angustiado e mais carente de amor. Precisa vê-los, no rude
uniforme listrado, feito para separá-los dos outros homens, lançar sobre nós um
olhar, no qual exprimem, mesmo se procuram esconder, a consciência mortífera da
sua inferioridade, para compreender o bem que pode levar a eles um sorriso, uma
palavra, um carinho. Um bem do qual, no princípio, não se dão conta, ao qual,
até no inicio, possam procurar resistir, mas que depois, pouco a pouco, se
insinua neles, se apodera deles, conquista-os, adoça-os, tirando do coração
deles sentimentos que pareciam sepultos e dos seus lábios palavras que pareciam
esquecidas. Precisa ter vivido esta experiência para entender que o nosso
comportamento frente aos condenados é a indicação mais segura da nossa
civilidade. Finalmente, para o encarcerado, vem o dia da libertação. Então, o
processo verdadeiramente terminou.
Bem, o dia da libertação pode chegar
com certeza; mas a se convencionar que se entenda a verdadeira libertação
daquela prisão, que é a nossa finitude, e não quero nem dizer do nosso egoísmo,
basta dizer do nosso ego; a porta está sempre aberta para a evasão e não
necessita grandes esforços para tal escopo; basta sentir o peso da nossa
solidão e com essa a necessidade do outro que está próximo de nós; quando se
sente a necessidade do outro se acaba por sentir a necessidade de Deus. Muitos crêem
Deus como infinitamente longe e imaginam que é necessário para alcançá-lo um
interminável caminho; mas não lembram a resposta que Ele deu a Eiagio Pascal:
pois quem me procura já me encontrou. Deus está sempre perto do homem; o
infinito é o limiar do finito não há como não reconhecê-lo, o que,
provavelmente, no cárcere é mais fácil do que fora. Uma vez reconhecido, a
cadeia se toma um palácio real. Nesse sentido, realmente, a libertação está ao
alcance das mãos de cada condenado. Não existem nem barras, nem guardiões que
possam impedir de libertar-se. Mas não é disto que agora quero falar; a ocasião
virá daqui a pouco.
Por outro lado, a contrário senso, se a
libertação se entende em sentido físico, antes que espiritual, o seu dia pode também
não chegar. Agora o pensamento caminha para o cárcere perpétuo, reclusão que
dura por toda a vida: no cárcere perpétuo a porta da cadeia não se abre a não
ser para deixar passar o cadáver. Isto quer dizer que para ele o processo não tem
fim. E porque a penitenciária é ou deveria ser um sanatório para recuperar as almas
doentes, a condenação ao cárcere perpétuo é a declaração de que a alma de um
homem está perdida para sempre (Deus queira que não). O som taciturno
(silencioso) destas palavras inspira um sentido de horror; mas não para aqueles
aos quais é dirigido, mas para aqueles que o tenham pronunciado. A Corte de
cassação italiana, em sessões conjuntas, a mais alta expressão da justiça
humana no nosso país (Itália), não só negou, poucos meses faz, a desumanidade
do cárcere perpétuo quanto a seriedade de quem o defende.
Paciência. Não necessita
insurgir-se nem inquietar-se contra este juízo. Também o Supremo
Tribunal é um juiz e, como todos os juízes, pode errar. Infelizmente os juízes
erram tanto mais facilmente quanto mais se acreditam seguros de não errar.
Enquanto o magistério da Igreja, se com o processo da beatificação averigua a
elevação de um santo ao paraíso, não conhece um processo direto para averiguar
a precipitação de um réprobo ao inferno, e os teólogos, temerosos de escrutar
no coração dos homens, e mais no coração de Deus, não ousam afirmar a
condenação ao inferno nem de Judas, a magistratura italiana, com a voz de seu
órgão mais insigne, tem declarado de modo análogo à humanidade que um homem
seja condenado por toda a vida, isto é, que a pena de reclusão, como a pena do
inferno, não tenha mais fim. Se precisasse uma outra prova da miséria do processo,
assim ela nos foi dada.
Mas também para os reclusos que não são
encarcerados perpétuos pode ocorrer que não venha o dia em que saiam vivos da
prisão. Um terrível aspecto da condenação à reclusão, também por um período
breve, é que ninguém tem certeza, naquele período, de não morrer. Tanto basta
dizer que o processo penal, o qual não termina com a condenação, mas segue com a
expiação, pode durar até a morte. A eventualidade da morte no cárcere é o risco
mais grave do encarceramento. E não porque uma interpretação benévola da
disciplina carcerária não consinta ao moribundo a extrema despedida dos seus
queridos, mas porque o morrer lhe trunca a esperança do retorno ao convívio
humano.
Esta, a esperança de retornar ao convívio
humano, de desvestir finalmente o horrível uniforme, de reassumir o aspecto do
homem livre, de retomar ao seu lugar na sociedade, é o oxigênio que alimenta o
encarcerado. Do momento no qual entrou no cárcere, esta é a razão de sua vida.
No privá-lo desta está a desumanidade da condenação à vida. O encarcerado
perpétuo não tem nem o conforto de contar os dias. E contar os dias é a vida do
encarcerado.
Infelizmente, porém, na maior parte dos
casos, também este esperar é falácia. O processo, sim, com a saída do cárcere está
terminado; mas a pena não: quero dizer o sofrimento e o castigo.
Podem-se imaginar, especialmente para
as condenações de longa duração, as dificuldades ocasionadas ao libertado do
cárcere pelas mudanças dos hábitos, pelas relações interrompidas, pelos
ambientes mudados; tudo isto não pode deixar de determinar uma crise, que
poderia também chamar-se crise do renascer. Se não fosse mais que isto, ainda
assim seria pouca coisa.
Ao invés, na maior parte dos casos, não
se trata de uma crise. A questão é muito mais grave. O encarcerado, saído do
cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para
as pessoas ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado; nesta
fórmula está a crueldade do engano. A crueldade está no pensar que, se foi,
deve continuar a ser. A sociedade fixa cada um de nós ao
passado. O rei, ainda quando, segundo o direito, não é mais rei, é
sempre rei; e o devedor, porquanto tenha pago o seu débito, é sempre devedor.
Este roubou; condenaram-no por isto; cumpriu a sua pena, porém(...).
Neste, porém, dizia, está a crueldade e
o engano. Porém, poderia roubar ainda; afirmo: trabalho não lhe dou! Assim as
pessoas raciocinam. E não importa que, assim raciocinando, antes de mais nada,
desatinam ao invés de raciocinar. Se raciocinassem se aperceberiam de que,
agora, não o futuro depende do passado, mas o passado do futuro; se isto não
fosse verdadeiro seria negar a redenção, aliás, a ressurreição. A fórmula do
“ex” é sacrílega justamente por isto. Os homens, que vêem tudo ao contrário,
continuam persuadidos de que como um foi continuará a ser. E não as pessoas
vulgares somente, mas também os homens de grande cultura e, por fim, aqueles
que fazem profissão de cristianismo. Todavia, também se esse fosse
um justo raciocínio, estes esquecem que a um certo ponto não basta raciocinar:
o raciocinar é necessário; mas não é o suficiente. Se não nos fosse a razão,
não teríamos a caridade. A caridade, essencialmente, é insensatez. Se São
Francisco tivesse raciocinado, nunca teria beijado o leproso, com o risco de se
contagiar.
Certamente, admitir ao serviço
um ex-ladrão, na própria casa, é um risco: poderia estar, mas também poderia
não estar curado (isso é inevitável. O estigma é grande. Como ocorreu com os
negros. Dir-se-á, ainda, que são escravos? Claro que não!). O risco da
caridade! Dar trabalho não é ser caridoso. Discordo. E as pessoas racionais
procuram evitar os riscos “in dubis abstine”. Assim o ex-ladrão fica sem trabalho. Bate nesta porta;
bate à outra porta: são todas pessoas racionais aquelas que poderiam dar-lhe a
maneira de ganhar o pão (quem precisa saber que ele é ex-presidiário? E não
pode o ex-presidiário trabalhar de forma autônoma?). Essas pessoas racionais
querem garantir-se; para elas garantia não estabelece a certidão criminal? Fora
então o certificado penal! O ex-ladrão, assim, é marcado na fronte: quem lhe dá
trabalho? Ah! as ilusões do cárcere, quando se contavam ansiosamente os dias
faltantes para a libertação.
O Estado? O Estado é um ser racional
também ele. Quando se trata de proclamar os princípios, especialmente no regime
da democracia, o Estado é o primeiro a dar o exemplo: o acusado não é
considerado culpado até que não seja condenado com sentença definitiva”; ‘a
Itália é uma república alicerçada no trabalho”; “a república tutela o trabalho
em todas as suas formas”. Mas quando se trata de tutelar os seus interesses,
também o Estado enruga a fronte. Um funcionário público, sendo apanhado como
suspeito de haver se apropriado dos fundos do erário, é submetido a um processo
penal; pode não ser verdade: pode ser também pouca coisa; pode ser também que
ele tenha se encontrado atrapalhado com os encargos familiares, aos tempos que
correm, em uma situação desesperada. Pode ser; mas a lei é lei: entretanto, é
suspenso do emprego e do estipêndio até a sentença definitiva; a Constituição o
considera ainda inocente, mas um inocente que não tem mais o direito de ganhar
o pão. Faz-se o processo e lhe inflige três anos de reclusão; se este é o seu
castigo, transcorridos que sejam, deveria voltar a ser o que era antes; ao
invés, não: o emprego está definitivamente perdido; para ele a saída do cárcere
é o principio em vez do fim de um calvário. Um professor atingido por uma
condenação não pode voltar a ensinar depois de tê-la cumprido. Um capitão marítimo,
saído da reclusão, não pode exercer nunca mais a sua profissão. Não são
exemplos inventados; eu os tirei, todos os três, da minha experiência mais
recente. De resto não haveria porque se trata de coisa sabida por todos: quem
ignora que para aspirar a um emprego público necessita ter limpa a certidão
criminal? (É verdade, mas é uma desgraça!)
E não se pode contestar que esta seja a
exigência mais racional deste mundo. Se o Estado se comporta assim, os cidadãos
não teriam razão de imitá-lo. Somente, na linha de raciocínio, igualmente se
deve reconhecer que a idéia do encarcerado, que conta os dias sonhando com a
libertação, não é mais que um sonho; bastam poucos dias depois que as portas da
cadeia se abriram para acordá-lo. Então, infelizmente, dia a dia, a sua visão do
mundo se coloca de cabeça para baixo: no fundo, no fundo, estava melhor na
cadeia. Este lento desfolhar-se das ilusões, este reverter de posições, este
desgosto daquela que ele acreditava ser a liberdade, este voltar o pensamento à
prisão como aquela que é, enfim, a sua casa, foi descrito egregiamente em um
notável romance de Hans Fallada; mas as pessoas não devem crer que sejam
situações criadas pela fantasia do escritor: a invenção corresponde
infelizmente à realidade.
Nem aqui seja dito, ainda uma vez, contra a realidade que se quer de fato protestar. Basta conhecê-la. A conclusão de havê-la conhecido é esta: as pessoas crêem que o processo penal termina com a condenação e não é verdade; as pessoas crêem que a pena termina com a saída do cárcere, e não é verdade; as pessoas crêem que o cárcere perpétuo seja a única pena perpétua; e não é verdade. A pena, se não mesmo sempre, nove vezes em dez não termina nunca. Quem em pecado está é perdido. Cristo perdoa, mas os homens não (...)
Civilização, humanidade, unidade são
uma coisa só: trata-se da possibilidade alcançada pelos homens de viverem em paz.
Nós temos todos um pouco a ilusão de que os delinqüentes sejam aqueles que
perturbam a paz e a perturbação se elimina separando-os dos outros; assim o mundo
se divide em dois setores: o dos civilizados e o dos incivilizados, uma espécie
de solução cirúrgica do problema da civilização. Aqui a idéia é exposta, como
sempre acontece quando se procura simplificar a expressão, em termos
paradoxais; mas não seria difícil demonstrar que ela corresponde exatamente ao
modo de pensar comum, empírico, científico e por fim filosófico.
Como se faz, então, para distinguir os
incivilizados dos civilizados na medida do frágil juízo humano? A primeira
coisa que ensina a experiência penal é que a penitenciária não é de fato diferente
do resto do mundo, tanto no sentido que também a penitenciária é um mundo, como
no sentido que também o resto do mundo é uma grande casa de pena. A idéia de
dentro estarem somente canalhas e fora somente honestos não é mais que uma
ilusão; aliás, ilusão é que um homem possa ser todo canalha ou todo honesto.
Provavelmente o processo penal, entendido no seu sentido mais amplo,
compreendendo o tribunal e a reclusão, é a mais eficaz entre as escolas de
psicologia; ou, por que não também de filosofia? E da mesma forma este é um ensinamento
de Jesus, o qual não se indignava em sentar-se na ceia com os publicanos e as
meretrizes. Foi uma meretriz aquela que, na casa de Simão fariseu (antes de conhecer
a Cristo), lhe depositou a jóia da sua generosidade, da sua devoção, das suas
lágrimas; e foi um ladrão que, enquanto um e outro agonizavam na cruz, derramou
o bálsamo de uma palavra de misericórdia sobre o seu coração transfixado.
(...)
Desta superstição, infelizmente, está
impregnado o pensamento moderno. Também este é um dos aspectos da crise da
civilização. Tudo se pede e tudo se espera do Estado; ou seja, do direito, mas
não porque o Estado e direito sejam a mesma coisa, mas porque o direito é o
único instrumento do qual, em última análise, o Estado pode se servir. Se é
verdade que cada fase da civilização tem o seu ídolo, o ídolo da que
atravessamos, hoje, é o direito. Nós nos tornamos adoradores do direito. Ora, não
há experiência, como a experiência penal, apta a destruir esta idolatria. As
misérias do processo penal são aspectos da miséria fundamental do direito. Se
procurei descobri-las, o sentimento que me guiou não está voltado a
desacreditar uma instituição, à qual dediquei toda a minha vida, mas alertar
contra a sua apreciação exagerada. Não se trata de desvalorizar o direito, mas
de evitar que seja sobrevalorizado. Em suma, desenganar o homem comum sobre
este ponto: que basta ter boas leis e bons juízes para alcançar a civilidade.
Enfim, o que o direito, também se fosse
construído e manobrado da melhor maneira possível, poderia obter é que os homens
se respeitem uns aos outros. Mas o respeito não elimina a divisão; e é esta que
se precisa superar. Até que os homens se julguem, permanecem divididos. O
respeito, em última análise, se resolve no meu e no seu; e também o juízo
conduz a esta divisão. Juízo e respeito, porquanto não pareçam, são todos
termos correlatos. Quando o ex-ladrão se apresenta na minha porta, não lhe
falto com o respeito se eu lhe respondo que não há trabalho para ele. A ilusão,
aliás a superstição a extirpar, é que assim fazendo eu seja um homem
civilizado. É necessário acostumar-se a fazer diferença entre o homem jurídico
e o homem civilizado.
(...)
Depois de tudo não é mais que um ato de
gratidão aquele que cumpre com estas conversações. Não se pode receber tanto
bem sem procurar repartir também aos outros. Cada vez mais me convenço de que
aquilo que me levou a conhecer as coisas, que estudei para explicá-las, foi um
privilégio. Trata-se, para mim, de pagar a dívida contraída recebendo este
privilégio. Diz um singular poeta espanhol
que “Solo la monedita del alma si pierde si no si da”, somente a moedinha da
alma se perde se não se dá. Os tesouros da matéria se guardam, mas os do
espírito se consomem, fechando-os em um escaninho. Agora, despedindo-me de
vocês, sinto-me mais leve."
Esse é o processo penal, calcado na miséria dos encarcerados, bandidos, assassinos, estupradores, estelionatários e etc... A pena destes é perpétua, pois a sociedade não perdoa.
Carlos Ilha
Esse é o processo penal, calcado na miséria dos encarcerados, bandidos, assassinos, estupradores, estelionatários e etc... A pena destes é perpétua, pois a sociedade não perdoa.
Carlos Ilha
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