terça-feira, 8 de junho de 2010

Coisa Julgada Inconstitucional - Relativização da Mesma - Artigo de Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro

A COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E OS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS PARA SEU CONTROLE



Humberto Theodoro Júnior
Professor Titular de Processo Civil da Faculdade de Direito da UFMG. Desembargador Aposentado do TJMG. Doutor em Direito. Advogado.

Juliana Cordeiro de Faria
Professora Assistente de Processo Civil da Faculdade de Direito da UFMG. Mestre em Direito Civil.

SUMÁRIO: 1. A coisa julgada inconstitucional: um convite à reflexão. 2. O princípio da constitucionalidade e o efeito negativo do ato inconstitucional. 3. A noção de coisa julgada. 4. O princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relatividade. 5. A intangibilidade da coisa julgada é um princípio constitucional? 6. A intangibilidade da coisa julgada e o princípio da constitucionalidade: noções que não se contrapõem. 7. A coisa julgada que ofende diretamente os princípios constitucionais e os mecanismos de seu controle. 8. Conclusões.


1. A coisa julgada inconstitucional: um convite à reflexão

No Estado Democrático de Direito, e como uma conseqüência das idéias de limitação do Poder político do Estado e do primado da lei enquanto expressão da vontade geral trazidas pela Revolução Francesa, tem sido sempre uma preocupação constante a de garantir a Supremacia da Constituição Federal, como único meio de assegurar aos cidadãos a certeza da tutela da segurança e da justiça como valores máximos da organização da sociedade. Desde que passou a ser prestigiada a idéia de primado hierárquico-normativo da Constituição, com afirmação do princípio da constitucionalidade, busca-se assegurar que não só os atos do Poder Público, como todo o ordenamento jurídico esteja conforme a sua Lei Fundamental.

Exatamente por isso, os mais variados ordenamentos jurídicos contemplam em seus sistemas mecanismos de controle da constitucionalidade dos atos emanados do Poder Público, ora confiando apenas a uma Corte Especial a atribuição de declarar a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e vinculante; ora também conferindo aos diversos órgãos integrantes do Poder Judiciário a competência para fazê-lo, limitada, todavia, a eficácia de suas decisões à relação processual em que proferida; ou, ainda, admitindo a convivência harmônica de ambos instrumentos de controle .

Porém, ao longo de mais de duzentos anos, o que se observa é que, em tema de inconstitucionalidade, as atenções e preocupações jurídicas sempre se detiveram no exame da desconformidade constitucional dos atos legislativos. Verifica-se, assim, que a grande parte dos estudos produzidos desde então centra-se na análise da constitucionalidade/inconstitucionalidade dos atos legislativos, não havendo uma maior preocupação com os atos do Poder Judiciário, em especial suas decisões que, sem a menor dúvida, são passíveis de serem desconformes à Constituição.

PAULO OTERO, constitucionalista português que desponta no cenário jurídico, bem detectou as razões do esquecimento, consoante se depreende da seguinte passagem de sua notável obra:

“As questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram objeto de um esquecimento quase total, apenas justificado pela persistência do mito liberal que configura o juiz como ‘a boca que pronuncia as palavras da lei’ e o poder judicial como ‘invisível e nulo’ (Montesquieu)” .

Com efeito, institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que agasalhassem inconstitucionalidade, especialmente após operada a coisa julgada e ultrapassado, nos variados ordenamentos, o prazo para a sua impugnação. A coisa julgada, neste cenário, transformou-se na expressão máxima a consagrar os valores de certeza e segurança perseguidos no ideal do Estado de Direito. Consagra-se, assim, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto, durante vários anos, como dotado de caráter absoluto.

Tal é o resultado da idéia, data venia equivocada e largamente difundida, de que o Poder Judiciário se limita a executar a lei, sendo, destarte, defensor máximo dos direitos e garantias assegurados no ordenamento jurídico e, por conseguinte, na própria Constituição. É em face do prestígio alcançado pelo postulado retro que, conforme assinala VIEIRA DE ANDRADE, “embora os tribunais formem um dos poderes do Estado, não há em princípio preocupação de instituir garantias contra as suas decisões” .

Contudo, não se pode olvidar que, segundo bem lembra PAULO OTERO, “como sucede com os outros órgãos do poder público, também os tribunais podem desenvolver uma actividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição” .

Ora, deparando-se com uma decisão judicial que contempla flagrante inconstitucionalidade quais os instrumentos para promover a sua adequação aos ditames máximos da Constituição?

Do ponto de vista do direito processual civil brasileiro existem mecanismos cujos contornos encontram-se bem definidos no sistema para sua correção, quais sejam, os recursos ordinários e extraordinários . Sob este aspecto a questão não oferece maiores dificuldades, mormente à vista do disposto no art. 102, III, da Constituição Federal brasileira, havendo farta literatura a seu respeito.

O problema para cuja reflexão se deseja fazer um convite é o de já não mais ser a decisão judicial inconstitucional passível de impugnação recursal. Nesta hipótese, existiria um mecanismo de controle de constitucionalidade da coisa julgada ou esta é isenta de fiscalização? Ou reformulando o questionamento: verificando-se que uma decisão judicial sob o manto da res iudicata avilta a Constituição, seja porque dirimiu o litígio aplicando lei posteriormente declarada inconstitucional, seja porque deixou de aplicar determinada norma constitucional por entendê-la inconstitucional ou, ainda, porque deliberou contrariamente a regra ou princípio diretamente contemplado na Carta Magna, poderá ser ela objeto de controle? Cuida-se, na lição de PAULO OTERO, “de um problema central do actual momento do Estado de Direito" .

A questão ganha relevância quando se verifica a cada vez mais freqüente atribuição aos juízes de poderes, erigindo-os em guardiões da constitucionalidade e da legalidade da atividade dos demais poderes públicos. Assiste-se, hodiernamente e como bem frisa CANOTILHO, a “um trânsito silencioso de um ‘Estado-legislativo-parlamentar’ para um ‘Estado jurisdicional executor da Constituição’” . Trata-se de fenômeno que se verifica diante do fato de cada vez mais as normas encerrarem conceitos indeterminados e abertos, o que exige maior atuação dos juízes na interpretação e criação do Direito.

Neste contexto, segundo lembra PAULO OTERO, observa-se, com efeito, “um crescente papel protagonizador do juiz na densificação e concretização interpretativa do sentido de tais conceitos e, consequentemente, do próprio Direito” . Donde advertir NEUMANN que se caminha para uma verdadeira “perversão do Estado de Direito em Estado Judicial” . Há, com efeito, uma hipervalorização do papel do juiz que o torna supremo em relação aos demais poderes do Estado, donde dever ser maior a preocupação com a constitucionalidade e legalidade de suas decisões, não se podendo mais deixá-las à margem de um controle efetivo.

Sob este aspecto é que os estudiosos do direito vêm se preocupando com a questão da constitucionalidade das decisões judiciais e dos efeitos da inconstitucionalidade sobre a res iudicata, buscando resposta para o problema de se saber se as decisões judiciais são ainda um feudo não sujeito a qualquer juízo ou espécie de controle de sua conformidade com a Constituição.

Depara-se, aí, mais uma vez, com o eterno conflito, mais aparente que real na espécie, do Direito quanto a sua preocupação com a segurança e certeza, ao mesmo tempo que persegue a justiça. Até bem pouco tempo sempre se buscou valorizar a segurança, pelo que a intangibilidade da coisa julgada vinha merecendo posição de destaque sendo poucos os que se aventuravam a questionar ou levantar o problema da inconstitucionalidade da coisa julgada, advogando a impossibilidade de sua subsistência. Admitir-se a impugnação da coisa julgada sob o fundamento autônomo de que contrária à Lei Fundamental do Estado era algo que não se coadunava com o ideal de certeza e segurança.

Todavia, estamos de acordo com PAULO OTERO, para quem “admitir, resignados, a insindicabilidade de decisões judiciais inconstitucionais seria conferir aos tribunais um poder absoluto e exclusivo de definir o sentido normativo da Constituição: Constituição não seria o texto formalmente qualificado como tal; Constituição seria o direito aplicado nos tribunais, segundo resultasse da decisão definitiva e irrecorrível do juiz”, o que não se adequa às noções do Estado de Direito. Admitir-se como válida a noção de Constituição ali esposada significa, ainda segundo magistralmente assinalado por PAULO OTERO, “proclamar como divisa do Estado de Direito a seguinte idéia: todos os poderes públicos constituídos são iguais, porém, o poder judicial é mais igual do que os outros” .

Neste cenário, torna-se imprescindível repensar-se o controle dos atos do Poder Público em particular da coisa julgada inconstitucional, na busca de soluções que permitam conciliar os ideais de segurança e os anseios de justiça, lembrando sempre, nesta trilha, que “num Estado de Direito material, tal como a lei positiva não é absoluta, também não o são as decisões judiciais. Absoluto, esse sim, é sempre o Direito ou, pelo menos, a idéia de um DIREITO JUSTO” .

2. O princípio da constitucionalidade e o efeito negativo do ato inconstitucional

Segundo lição de JORGE MIRANDA, “constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre um coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um ato – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível” .

A Constituição é dotada de características particulares de cunho ético-jurídico e que expressam a vontade soberana de uma Nação. Exatamente por isso se diz ser a conformidade de uma norma ou ato com a Constituição condição para sua validade e eficácia. Ou nos dizeres de JORGE MIRANDA,

“A concordância, a relação positiva da norma ou do acto com a Constituição envolve validade, o contraste, a relação negativa implica invalidade. Se a norma vigente ou o acto é conforme a Constituição reveste-se de eficácia; se não é, torna-se ineficaz” .

Diante da importância de que se reveste a Constituição no quadro de organização de um Estado e de sistematização de direitos e garantias fundamentais, tornou-se corrente sustentar-se que a validade de uma norma ou ato emanado de um dos Poderes Públicos está condicionada à sua adequação constitucional.

Paralelamente à visão da Constituição como Lei Fundamental e da qual todos os atos extraem o fundamento de sua validade, surge outra idéia: a de que a Constituição deve ser juridicamente garantida. Assim, é hoje pacífico o entendimento segundo o qual “não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida” .

A garantia jurídica de que é merecedora a Constituição decorre de um princípio que é caro ao Estado de Direito: o da constitucionalidade. Aludido princípio é conseqüência direta da força normativa e vinculativa da Constituição enquanto Lei Fundamental da ordem jurídica e pode ser enunciado a partir do contraposto da inconstitucionalidade, nos termos seguintes:

“Sob pena de inconstitucionalidade – e logo, de invalidade – cada acto há de ser praticado apenas por quem possui competência constitucional para isso, há de observar a forma e seguir o processo constitucionalmente prescritos e não pode contrariar, pelo seu conteúdo, nenhum princípio ou preceito constitucional” .

Com efeito, há um princípio geral que não pode ser ignorado de que todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição .

O princípio da constitucionalidade, que exige para a validade do ato sua conformidade com a Constituição, funciona, nas precisas lições de JORGE MIRANDA, “como a ratio legis da garantia jurisdicional da Constituição” . É, pois, o princípio da constitucionalidade que resume a garantia de observância da Constituição, pois a ele se encontra agregada a sanção para o seu desrespeito: a inconstitucionalidade do ato, o que importa em sua invalidade.

À vista da busca sempre constante da constitucionalidade, pode-se dizer que o ato que não a contempla tem um valor negativo. Fala-se, assim, do desvalor do ato inconstitucional. Com isso se quer expressar, nos dizeres de JORGE BACELAR GOUVEIA, “as conseqüências jurídicas negativas da inconstitucionalidade instrínseca de um acto do poder político. Perante algo que contradiz a Constituição, o ordenamento estipula efeitos que o depreciam e afirma a Supremacia daquela” .

O princípio da constitucionalidade e o efeito negativo que advém do ato inconstitucional não se dirigem apenas, como podem pensar os mais desavisados, aos atos do Poder Legislativo. Aplicam-se a toda a categoria de atos emanados do Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário):

“... podemos registrar que toda actividade jurídica (e política em sentido estrito) se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade” .

Em específico, quanto aos atos do Poder Judiciário, que interessam ao presente estudo, pode-se dizer que não há a sua impermeabilidade aos efeitos da inconstitucionalidade, estando, pois, também submetidos ao princípio da constitucionalidade:

“... sublinhe-se que também a actividade jurisdicional se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade, dependendo a validade de seus actos da conformidade com a Lei Fundamental” .

Nada obstante, sempre que se fala em decisão judicial, à mingua de literatura a respeito, tem-se a falsa impressão de que o seu controle de constitucionalidade, no direito brasileiro, é possível apenas enquanto não operada a coisa julgada, através do último recurso cabível que é o extraordinário previsto no art. 102, III, da CF. Após verificada esta última, a imutabilidade que lhe é característica impediria o seu ataque ao fundamento autônomo de sua inconstitucionalidade. Corresponde aludida idéia ao modelo de Supremacia da Constituição buscado no moderno Estado de Direito?

Pensamos que não. A coisa julgada não pode suplantar a lei, em tema de inconstitucionalidade, sob pena de transformá-la em um instituto mais elevado e importante que a lei e a própria Constituição. Se a lei não é imune, qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, por que o seria a coisa julgada?

A única explicação para que não se tenha, até o momento, no direito brasileiro enfrentado o tema, resulta, ao que pensamos, de uma visão distorcida da idéia de imutabilidade inerente ao conceito de coisa julgada. Senão veja-se.

3. A noção de coisa julgada

“Denomina-se coisa julgada material” - dispõe o art. 467 do CPC -“a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

Muitas são as tentativas de conceituar o que substancialmente seja o fenômeno da coisa julgada. Do ponto de vista prático, que é o mais importante para o operador do direito, assim como para os seus destinatários finais, a coisa julgada realmente se apresenta como “a indiscutibilidade da nova situação jurídica declarada pela sentença e decorrente da inviabilidade recursal” .

Com efeito, a função da jurisdição implica, em última análise, buscar uma solução definitiva e indiscutível para o litígio que provocou o exercício do direito de ação e a instauração do processo.

Por isso, quando já não mais caiba recurso contra ela, segundo as leis processuais, a sentença se torna imutável e indiscutível (CPC, art. 467) e sua força será a de lei, “nos limites da lide e das questões decididas” (CPC, art. 468).

Diz-se, então, que a sentença faz coisa julgada ou passou em julgado. E, contra seu conteúdo lógico-jurídico não poderão reagir nem os tribunais, proibidos que estarão de decidir novamente a mesma lide (CPC, art. 471), nem os legisladores, impedidos que estão de legislar, retroativamente, em prejuízo da res iudicata (C.F., ar. 5o., XXXVI).

Uma vez que a res in iudicium deducta compreende uma relação jurídica material, que se pretende afirmar ou negar, para assegurar-se um “bem de vida” (“coisa”, “relação” ou “direito subjetivo”), “tal bem, assegurado às partes pela sentença, é que constitui a coisa julgada. Definiu-a há muitos séculos MODESTINO, no célebre enunciado do DIGESTO: res iudicata dicitur, quae finem controversiarum pronuntiatione iudices accipit: vel condemnatione vel absolutione contingit (42, I, 1)” . Ou em vernáculo:

“Diz-se coisa julgada a que, pelo pronunciamento do juiz, alcança o fim das controvérsias, o que acontece pela condenação ou pela absolvição”.

“A coisa julgada consiste, em suma” – como bem lembra MONIZ ARAGÃO - “não na sentença, como tal considerada, mas no julgamento (accertamento) nela contido (BUSNELLI, Riv. Trim. di Diritto e Procedura Civile, 1961, II, 1.338), ou na “norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação” (isto é: a res) “submetida à cognição judicial” (BARBOSA MOREIRA, Rev. Bras. de Direito Processual 32/47), por ela (a sentença) revelada” .

Mas, não basta para se ter a coisa julgada a existência de uma solução para a controvérsia debatida em juízo, visto que, na linguagem do direito processual civil atual, a sentença somente adquire a autoridade de coisa julgada, quando não mais comporta recurso algum e seja, assim, irrevogável.

Há, então, no conceito de res iudicata algo mais que o pronunciamento judicial ditando a vontade concreta da lei para pôr fim ao conflito de interesses deduzido em juízo.

“Para o direito atual, a locução coisa julgada não designa apenas o julgamento da res, mas, isto sim, a especial autoridade de que fica investido quando preclui (ou se esgota) a faculdade de contra ele recorrer, o que o torna imutável. A imutabilidade do julgamento, pois, é que consubstancia a coisa julgada” .

Nesse mesmo rumo de idéias, escreve VELLANI que:

“Con la expresión cosa juzgada (substancial) o más brevemente fallo (substancial), se indica, pues, una combinación de dos elementos: la declaración de certeza realizada por el juez más aquella autoridad o carácter que, en un cierto momento, por voluntad de la ley (art. 2.909 del Cód. Civ.) cubre la declaración de certeza” .

O juiz - afirma CARNELUTTI - não faz mais do que julgar. É a lei que manda que aquilo que tenha sido por ele julgado valha como se houvesse sido pronunciado pelo próprio legislador .

Por conseguinte, a expressão coisa julgada não se confunde com a sentença como peça elaborada pelo magistrado, mas prende-se à sentença que atingiu a eficácia de imperatividade e imutabilidade, nas circunstâncias previstas em lei, para tanto.

A sentença ao compor a lide, seja declarando, condenando ou constituindo, não depende do trânsito em julgado para produzir seus naturais efeitos, conforme explica LIEBMAN. Tanto é assim que em muitos casos a lei admite a execução provisória antes da res iudicata. O que a caracteriza é tornar, em determinado momento, imutável a matéria decidida. Por isso, LIEBMAN defende a tese de que a “autoridade da coisa julgada não é efeito ulterior e diverso da sentença, mas uma qualidade de seus efeitos e a todos os seus efeitos referentes, isto é, precisamente a sua imutabilidade” .

“Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutável, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato” .

Fácil é, pois, notar que ao conceito de coisa julgada se encontra umbilicalmente ligada a idéia de imutabilidade.

4. O princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relatividade

“O caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ela é, por isso, expresssão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica” .


Quantas e quantas vezes não se repetiram as noções supra que bem sintetizam o fundamento de se conceber a coisa julgada como decisão judicial imutável: a necessidade de segurança e certeza do Direito.

Tal se deve ao fato de que a incerteza jurídica provocada pelo litígio é um mal não apenas para as partes em conflito, mas para toda a sociedade, que se sente afetada pelo risco de não prevalecerem no convívio social as regras estatuídas pela ordem jurídica como garantia de preservação do relacionamento civilizado.

Daí a importância da função jurisdicional que é desempenhada pelo Estado como parcela de sua própria soberania. Assim é que para realizar, a contento, a pacificação dos litígios entendeu-se necessário dar ao provimento jurisdicional uma condição de estabilidade, de definitividade. Do contrário, mal encerrado o processo, as partes restabeleceriam as divergências e, indefinidamente, a jurisdição voltaria sucessivas vezes a se ocupar da mesma divergência entre os mesmos litigantes. Em síntese, o litígio nunca seria realmente composto.

Para que tal não ocorresse, o sistema processual, desde épocas imemoriais, concebeu o instituto da coisa julgada, pelo qual, uma vez esgotada a possibilidade de impugnação dentro da relação processual, a sentença assume uma força, ou autoridade, especial: torna-se imutável e indiscutível, tanto para as partes como para o Estado. Nenhum dos litigantes poderá propor novamente a mesma causa, nem tampouco tribunal algum poderá julgar outra vez a causa encerrada e sob autoridade da res iudicata.

Assim é que, “em nome da tutela da segurança jurídica, verifica-se que assume especial relevo a certeza do direito definido pelos tribunais e destinado, directa ou indirectamente, a regular litígios resultantes de situações concretas e individualizadas” .

Sob este aspecto é que se compreende o fato de não se encontrarem as decisões judiciais sob o manto da res iudicata sujeitas a um princípio de livre modificabilidade ou revogabilidade. A pretexto de garantir a segurança e certeza jurídicas, os ordenamentos em geral não admitem a livre revogação ou alteração do que restou decidido com força de coisa julgada. Donde a tendência generalizada de se conferir especial estabilidade às decisões, contrariamente ao que se passa com os atos legislativos e administrativos. Ou seja:

“... as decisões judiciais têm um especial regime legal tendente a proporcionar a sua estabilidade” .

Todavia, a idéia de imutablidade inerente à coisa julgada deve ser compreendida em seus reais contornos. É que a irrevogabilidade presente na noção de coisa julgada apenas significa que a inalterabilidade de seus efeitos tornou-se vedada através da via recursal e não que é impossível por outras vias.

Há que se sublinhar, com efeito, que a inalterabilidade da decisão judicial transitada em julgado não exclui, ainda que em termos excepcionais, a sua modificabilidade . É o caso no direito brasileiro, por exemplo, da ação rescisória que tem por objetivo, exatamente, o de desconstituir a coisa julgada (CPC, arts. 485 e segs.). Enfim:

“... o caso julgado consubstancia a ideia de uma decisão judicial firme. Todavia, cumpre referir que o carácter firme da decisão deve ser entendido enquanto imodificabilidade através de recurso ordinário” .

A coisa julgada, neste contexto, não está imune à impugnação, podendo vir a ser desconstituída, no direito brasileiro, através da ação rescisória, uma vez configurada qualquer das hipóteses previstas no art. 485 do CPC. São casos em que o legislador considerou que os vícios de que se reveste a decisão transitada em julgado são tão graves que justificam abrir-se mão da segurança em benefício da garantia de justiça e de respeito aos valores maiores consagrados na ordem jurídica.

A idéia que norteia a admissibilidade da ação rescisória é a de que não se pode considerar como espelho da segurança e certeza almejados pelo Direito uma decisão que contém séria injustiça. A segurança como valor inerente à coisa julgada e, por conseguinte, o princípio de sua intangibilidade são dotados de relatividade, mesmo porque absoluto é apenas o DIREITO JUSTO . Vale transcrever a lição de JORGE MIRANDA, a respeito do direito português:

“O princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer restrições. Ele tem de ser apercebido no contexto global” .

5. A intangibilidade da coisa julgada é um princípio constitucional?

A Constituição Federal de 1988, ao contrário da Portuguesa , não se preocupou em dispensar tratamento constitucional ao instituto da coisa julgada em si. Muito menos quanto aos aspectos envolvendo a sua inconstitucionalidade. Apenas alude à coisa julgada em seu art. 5º, XXXVI, quando elenca entre as garantias fundamentais a de que estaria ela imune aos efeitos da lei nova. Ou seja, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Como se observa, a preocupação do legislador constituinte foi apenas a de pôr a coisa julgada a salvo dos efeitos de lei nova que contemplasse regra diversa de normatização da relação jurídica objeto de decisão judicial não mais sujeita a recurso, como uma garantia dos jurisdicionados. Trata-se, pois, de tema de direito intertemporal em que se consagra o princípio da irretroatividade da lei nova.

Neste sentido, pode-se citar a lição sempre sábia e irrespondível do Eminente Ministro JOSÉ AUGUSTO DELGADO:

“O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance que muitos intérpretes lhe dão. A respeito, filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter sido vontade do legislador constituinte, apenas, configurar o limite posto no art. 5º, XXXVI, da CF, impedindo que a lei prejudique a coisa julgada” .

Com efeito, a regra do art. 5º, XXXVI, CF, se dirige apenas ao legislador ordinário, cuidando-se de “sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao Poder legisferante ‘prejudicar’ a coisa julgada. É esta a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária” .

Daí que a noção de intangibilidade da coisa julgada, no sistema jurídico brasileiro, não tem sede constitucional, mas resulta, antes, de norma contida no Código de Processo Civil (art. 457), pelo que de modo algum pode estar imune ao princípio da constitucionalidade, hierarquicamente superior.

6. A intangibilidade da coisa julgada e o princípio da constitucionalidade: noções que não se contrapõem

Já se afirmou nos itens precedentes que o princípio da constitucionalidade é informativo da validade de todos os atos emanados do Poder Público, em qualquer de suas esferas. De modo que aqueles atos desconformes à Constituição são dotados de um valor negativo derivado de sua inconstitucionalidade: a nulidade.

Por sua vez, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, diferentemente do que se dá no direito português, não tem tratamento constitucional, mas é contemplado apenas na legislação ordinária. Isto significa, segundo assinalado no item anterior, que é ele, no direito nacional, hierarquicamente inferior. Não se pode, assim, falar no Brasil, de conflito entre princípios constitucionais, evitando-se com isso a séria angústia de se definir aquele que prevalece sobre o outro, como se dá em Portugal, a partir do princípio da proporcionalidade e razoabilidade.

A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional , traz como consectário a idéia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional.

Aludida sujeição do princípio da imutabilidade da coisa julgada ao princípio da constitucionalidade é verdadeiro não só no direito brasileiro, mas também naqueles em que ambos têm a sua sede constitucional, como é a hipótese de Portugal. Os doutrinadores daquele País têm se mostrado acordes em que

“a sentença violadora da vontade constituinte não se mostra passível de encontrar um mero fundamento constitucional indirecto para daí retirar a sua validade ou, pelo menos, a sua eficácia na ordem jurídica como caso julgado. Na ausência de expressa habilitação constitucional, a segurança e a certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional” .

Com efeito, é sabido que a coisa julgada, mesmo que contemple uma ofensa à lei ordinária, nos mais variados ordenamentos jurídicos, está sujeita a ter validados definitivamente os seus efeitos quando ultrapassado o prazo para sua excepcional impugnação. O fundamento para tal solução pode ser facilmente encontrado e explicado pela segurança e certeza jurídicas. Tutela-se e empresta-se eficácia à coisa julgada ilegal, diante da necessidade de pacificação dos conflitos e segurança dos jurisdicionados, exatamente porque respeitam a Constituição:

“Na realidade, a certeza e a segurança são valores constitucionais passíveis de fundar a validade de efeitos de certas soluções antijurídicas, desde que conformes com a Constituição” .

Nada obstante a segurança e certeza serem suficientes a justificar a validade da coisa julgada ilegal, o mesmo já não se pode dizer a respeito da coisa julgada contrária à Constituição. É que os valores da segurança e certeza “carecem de força positiva autónoma para conferir validade a actos jurídicos inconstitucionais”. Ou ainda nas palavras de PAULO OTERO:

“A segurança e a certeza jurídicas apenas são passíveis de salvaguardar ou validar efeitos de actos desconformes com a Constituição quando o próprio texto constitucional expressamente o admite. (...) Fora de tais situações, repete-se, os valores da segurança e da certeza não possuem força constitucional autónoma para fundamentarem a validade geral de efeitos de atos inconstitucionais” .

Cabe neste tópico a indagação: como se falar em segurança e certeza jurídicas se não há o mínimo de garantia de respeito à Lei Fundamental?

A diversidade de tratamentos dispensados à coisa julgada ilegal e à inconstitucional encontra também sua justificativa a partir do princípio da separação de poderes, uma vez que “o que verdadeiramente está em causa nas decisões judiciais inconstitucionais não é a violação de uma vontade jurídica dotada de idêntica legitimidade constitucional, tal como sucede nas decisões judiciais violadoras do direito infraconstitucional: os tribunais são titulares de um poder constituído e não constituinte; o poder judicial detém uma soberania exercível nos quadros da Constituição, não podendo criar decisões sem fundamento directo ou em oposição ao preceituado na Lei Fundamental” .

Assim, nos sistemas jurídicos em que não há expressa ressalva na Constituição, é inafastável a conclusão de que a tutela da coisa julgada e da imutabilidade que lhe é inerente pressupõe, via de regra, o atendimento do princípio da constitucionalidade:

“O princípio da constitucionalidade determina ... que a validade de quaisquer actos do poder público dependa sempre da sua conformidade com a Constituição. Por isso mesmo, as decisões judiciais desconformes com a Constituição são inválidas; o caso julgado daí resultante é, também ele, consequentemente, inválido, encontrando-se ferido de inconstitucionalidade”

A relação, portanto, que existe entre o princípio da constitucionalidade e o da imutabilidade da coisa julgada é de antecedente e conseqüente, ou melhor, de prejudicialidade, mormente no direito brasileiro em que se está diante de um princípio de natureza constitucional e outro de natureza ordinária. Assim, para que se fale na tutela da intangibilidade da coisa julgada e por conseguinte na sua sujeição a um regime excepcional de impugnação, é necessário que antes se investigue sua adequação à Constituição. Ou nas precisas palavras de PAULO OTERO a respeito do direito português em que o princípio da intangibilidade tem a sua sede constitucional:

“... o princípio da imodificabilidade do caso julgado foi pensado para decisões judiciais conformes com o Direito ou, quanto muito, decisões meramente injustas ou ilegais em relação à legalidade ordinária. A imodificabilidade do caso julgado apenas pode concorrer em pé de igualdade com o princípio da constitucionalidade dos actos jurídico-públicos quando essa imodificabilidade ou insindicabilidade seja consagrada constitucionalmente...
Em todas as restantes situações, o princípio da imodificabilidade do caso julgado não tem força suficiente para limitar ou condicionar o princípio da constitucionalidade das decisões judiciais” .


7. A coisa julgada que ofende diretamente os princípios constitucionais e os mecanismos de controle

Há uma afirmação feita pelo Eminente Ministro JOSÉ DELGADO, em Palestra por ele proferida, que se reveste de uma rara felicidade no mundo atual:

“... não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição Federal e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente desconheça que o branco é branco e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice-versa” .

As palavras do Ministro JOSÉ DELGADO são em verdade um convite à revisitação da própria noção de coisa julgada, não podendo mais subsistir a antiga noção de que

“a coisa julgada não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo (...) Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante ao acto de vontade do juiz...” .

O direito processual civil mudou e a busca da verdade real, como meio de se alcançar a justiça e concretizar o anseio do justo processo legal, é uma exigência de tempos modernos. Exatamente por isso as decisões judiciais devem espelhar ao máximo essa verdade, dizendo ser branco o branco, como bem lembrado pelo Ministro JOSÉ DELGADO. O direito moderno não pode se contentar apenas com a verdade formal, em nome de uma tutela à segurança e certeza jurídicas. No Estado de Direito, especialmente no Estado brasileiro, a justiça é também um valor perseguido (Preâmbulo da Constituição Federal). O que se busca, hodiernamente, é que se aproxime ao máximo do Direito justo .

E nada mais injusto que uma decisão judicial contrária aos valores e princípios consagrados na Constituição Federal.

A partir das considerações e reflexões formuladas pelo Ministro JOSÉ DELGADO, fomos despertados para o trato da coisa julgada inconstitucional e, mais ainda, em buscar traçar os mecanismos processuais de sua impugnação no intuito de tornar efetivo o princípio da constitucionalidade.

Embora existam várias situações em que se configura a coisa julgada inconstitucional , interessa ao presente estudo a hipótese em que a decisão judicial viola diretamente as regras, princípios e garantias consagrados na Constituição Federal.

Neste tópico, indispensável é sempre lembrarmos o princípio geral segundo o qual “todos os actos do poder público, incluindo os actos jurisdicionais, são inválidos se desconformes com a Constituição” .

Uma decisão judicial que viole diretamente a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns , não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer, que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença, o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado.

Assim, embora existente, a exemplo do que se dá com a lei inconstitucional, o ato judicial é nulo , estando sujeito “em regra geral, aos princípios aplicáveis a quaisquer outros actos jurídicos inconstitucionais” .

Com efeito, entendemos que a coisa julgada inconstitucional submete-se ao mesmo regime de inconstitucionalidade aplicável aos atos do Poder Legislativo.

É princípio geral assente o lembrado por PAULO OTERO de que “as normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo o momento ser destruídas judicialmente” . Trata-se de um princípio que decorre do sistema geral de nulidades – vício que contamina os atos inconstitucionais -, não sujeitas à prescrição.

Mas qual o mecanismo processual cabível no direito brasileiro para se ver reconhecida a inconstitucionalidade da coisa julgada?

O exame do ordenamento jurídico nacional revela que não há nenhum mecanismo cuja previsão seja expressa para controle da coisa julgada inconstitucional, ao contrário do que se observa na Alemanha, por exemplo.

A Constituição Federal brasileira, ao estruturar os órgãos do Poder Judiciário, atribuiu ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar originariamente “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual” (art. 102, I, ‘a’). Isto é, revelando a tendência clássica de preocupação apenas com o controle de constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo dotados de força normativa, franqueia a ação direta de inconstitucionalidade apenas para tais atos, deixando de contemplar os atos decisórios do Poder Judiciário sob o manto da res iudicata.

À míngua de previsão expressa de um instrumento de controle, muitos poderiam ser conduzidos à conclusão de que a coisa julgada inconstitucional estaria imune a qualquer meio de impugnação. Destarte, tão logo configurada a coisa julgada, com o esgotamento da via recursal, não mais haveria a possibilidade de ser alterada acaso contivesse uma violação direta à Constituição Federal.

Ora, aludido entendimento mostra-se insustentável, mormente quando se verifica que até mesmo a coisa julgada que contém vício menor (ilegalidade) sujeita-se à impugnação através da ação rescisória contemplada nos arts. 485 e seguintes do Código de Processo Civil.

Surge, então, a indagação: o instrumento processual para a impugnação seria a ação rescisória, sujeitando-se, assim, a coisa julgada inconstitucional ao mesmo regime jurídico da coisa julgada ilegal, inclusive quanto aos prazos?

O Superior Tribunal de Justiça vem, frequentemente e sem enfrentar diretamente o tema, admitindo a ação rescisória para desconstituir coisa julgada inconstitucional. Trata-se de hipótese envolvendo, em regra, o direito tributário em que a decisão judicial transitada em julgado se fundou em norma posteriormente declarada inconstitucional:


“PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO RESCISÓRIA - INTERPRETAÇÃO DE TEXTO CONSTITUCIONAL - CABIMENTO - SÚMULA 343/STF- INAPLICABILIDADE - VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI (CPC, ART. 485, V) - FNT-SOBRETARIFA - LEI 6.093/74 - INCONSTITUCIONALIDADE (RE 117315/RS) - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL SUPERADA - SÚMULA 83/STJ - PRECEDENTES.
- O entendimento desta Corte, quanto ao cabimento da ação rescisória nas hipóteses de declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei é no sentido de que "a conformidade, ou não, da lei com a Constituição é um juízo sobre a validade da lei; uma decisão contra a lei ou que lhe negue a vigência supõe lei válida. A lei pode ter uma ou mais interpretações, mas ela não pode ser válida ou inválida, dependendo de quem seja o encarregado de aplicá-la. Por isso, se a lei é conforme à Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória ainda que na época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão aplica lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declare inconstitucional".(Resp 128.239/RS)
- A eg. Corte Especial deste Tribunal pacificou o entendimento, sem discrepância, no sentido de que é admissível a ação rescisória, mesmo que à época da decisão rescindenda, fosse controvertida a interpretação de texto constitucional, afastada a aplicação da Súmula 343/STF (Resp. 155.654/RS, D.J. de 23.08.99)” (RESP 36017/PE, 2ª T., Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, DJU 11/12/2000, p.00185)


“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485, V, CPC. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DE PRECEITO LEGAL NO QUAL SE LOUVARA O ACÓRDÃO RESCINDENDO.
Cabível a desconstituição, pela via rescisória, de decisão com trânsito em julgado que "deixa de aplicar uma lei por considerá-la inconstitucional ou a aplica por tê-la como de acordo com a Carta Magna. Ação procedente.” (AR 870/PE, 3ª Seç., rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 13/03/2000, p.00123)


As hipóteses mais recentes de que se têm notícias cuidaram da inconstitucionalidade da coisa julgada em uma das situações, não trabalhando diretamente com a decisão judicial que violasse diretamente norma ou preceito contido na Constituição Federal.

A admissibilidade da ação rescisória para a impugnação da coisa julgada inconstitucional expressada nos julgados supra, porém, não significa a sua submissão indistinta ao mesmo regime da coisa julgada ilegal, de modo a que, ultrapassado o prazo de dois anos para o manejo daquela ação, impossível o seu desfazimento. Do contrário seria equiparar a inconstitucionalidade à ilegalidade, o que é não só inconveniente como avilta o sistema e valores da Constituição:

“... equiparar os actos jurisdicionais ilegais, conformes com a Constituição aos actos meramente ilegais, ..., traduz uma forma indirecta de desconstitucionalizar actos violadores da Constituição” .

Há que serem extraídas todas as conseqüências do reconhecimento da impossibilidade de subsistência da coisa julgada inconstitucional, de modo a que se submeta exatamente ao mesmo regime de inconstitucionalidade dos atos legislativos, para o qual não há prazo.

Deste modo a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da declaração de inconstitucionalidade da coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos, a exemplo do que se dá com a coisa julgada que contempla alguma nulidade absoluta, como é o exemplo, do processo em que há vício de citação:

“Rescisória. Sentença nula. Defeito da Citação. Dispensa Rescisória. Não há prazo decadencial. Para a hipótese do art. 741, I, do atual CPC, que é a da falta ou nulidade de citação, havendo revelia persiste, no Direito positivo brasileiro, a querela nullitatis, o que implica dizer a nulidade independentemente do prazo para a propositura da ação rescisória que, a rigor, não é cabível para essa hipótese” (STF, RE 97.589, Pleno, rel. Min. Moreira Alves, DJU 03/06/1982, p. 7.883).



A decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte pode “a qualquer tempo ser declarada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução” (STJ, Resp 7.556/RO, 3ª T., rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439).

Nada obstante e porque as nulidades podem ser decretáveis até mesmo de ofício, como é a hipótese da inconstitucionalidade , a eleição da via da rescisória, ainda que inadequada, para a arguição da coisa julgada inconstitucional não importa na impossibilidade de conhecer-se do vício. O que se deve ter em mente é o fato de que a admissibilidade da rescisória, nesta hipótese, é medida extraordinária diante da gravidade do vício contido na sentença.

Em verdade, a coisa julgada inconstitucional, à vista de sua nulidade, reveste-se de uma aparência de coisa julgada, pelo que, a rigor, nem sequer seria necessário o uso da rescisória. Esta tem sido admitida pelo princípio da instrumentalidade e economicidade. O certo é que “verificando-se a inconstitucionalidade directa de uma decisão judicial, não deve haver qualquer preocupação em evitar que o tribunal seja colocado na situação de contradizer a decisão anterior desconforme com a Constituição” . Ainda segundo PAULO OTERO:

“Admitir solução contrária, significaria reconhecer a autovinculação dos tribunais de um Estado de Direito democrático a actos inconstitucionais e a ausência de uma tutela processual eficaz contra as inconstitucionalidades do poder judicial” .

Os Tribunais, com efeito, não podem se furtar de, até mesmo de ofício, reconhecer a inconstitucionalidade da coisa julgada o que pode se dar a qualquer tempo, seja em ação rescisória (não sujeita a prazo), em ação declaratória de nulidade ou em embargos à execução.

A inconstitucionalidade direta da coisa julgada afasta o seu efeito positivo, de modo que “intentada uma acção que tenha como fundamento do pedido uma anterior decisão judicial transitada em julgado, o juiz só terá de decidir o novo pedido em conformidade com o caso julgado se este for conforme com a Constituição”. Isto é, e para nos valermos do exemplo de PAULO OTERO

“... se perante uma sentença condenatória transitada em julgado é intentada uma posterior acção executiva, o juiz deverá proceder ao exame da constitucionalidade do referido título executivo. Se concluir que o mesmo é directamente desconforme com a Constituição, deve considerar improcedente o pedido de execução, fundamentando a sua decisão na inconstitucionalidade do respectivo título base” .

Esse mecanismo de controle pode ser utilizado também no direito brasileiro, porque nas execuções de sentença o art. 741, II, do CPC admite embargos para argüir a “inexigibilidade do título”, e sendo nula a coisa julgada inconstitucional, não se pode tê-la como “título exigível” para fins executivos. Com efeito, a exigibilidade pressupõe sempre a certeza jurídica do título, de maneira que não gerando certeza a sentença nula, carecerá ela, ipso facto, de exigibilidade.

Em face da coisa julgada que viole diretamente a Constituição, deve ser reconhecido aos juízes um poder geral de controle incidental da constitucionalidade da coisa julgada. Entendimento contrário e como muito bem lembrado por PAULO OTERO, importaria em que se admita “que o juiz tenha o dever oficioso de recusar a aplicação de normas jurídicas contrárias à Constituição, tendo, por outro lado, em contradição, o dever de aplicar casos julgados inconstitucionais” .

8. A diferente situação da aplicação da lei inconstitucional e da recusa de aplicação da lei constitucional

A jurisprudência, de maneira geral, afasta o cabimento da ação rescisória quando, ao tempo da sentença rescindenda, a lei aplicada, era de interpretação controvertida nos tribunais, mesmo que, mais tarde, o entendimento pretoriano tenha se pacificado em sentido diverso do adotado pelo decisório impugnado .

No entanto, para o Superior Tribunal de Justiça, essa orientação vale apenas para a violação da lei ordinária (CPC, art. 485, V), “não, porém, de texto constitucional” . Em se tratando de matéria disciplinada pela Carta Magna, outrossim, pouco importa que a decisão rescindenda tenha afirmado a inconstitucionalidade ou constitucionalidade, em clima de interpretações controvertidas nos tribunais. A Súmula n. 343 do STF deverá ser sempre afastada e a ação rescisória caberá, sem restrições, se a controvérsia acabou em face de prevalência de tese contrária à da sentença impugnada .

O Superior Tribunal de Justiça, como se vê, tem tratado com igual critério a sentença que deixa de aplicar lei ordinária a pretexto de inconstitucionalidade e a que acolhe lei ordinária rejeitando argüição de inconstitucionalidade. Em ambos os casos, o posicionamento do referido Tribunal é favorável ao cabimento da rescisória, sempre que, posteriormente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, vier a se fixar em sentido diverso da tese que prevalecia ao tempo dos decisórios rescindendos. Funda-se, o STJ, no pressuposto de que a questão constitucional conduz à nulidade dos preceitos que não se afinem aos ditames superiores da Carta Magna, e que, assim, não se deve deixar de rescindir a sentença a eles desconforme.

As duas situações cotejadas, porém, não são iguais. Quando um julgado aplica lei inconstitucional, a ofensa é cometida diretamente contra a Constituição. A lei aplicada, sendo absolutamente nula, contamina de igual ineficácia também a sentença que lhe pretendem reconhecer validade. No caso, porém, de não aplicação da lei ordinária, por alegado motivo de ordem constitucional que mais tarde vem a ser afastado por mudança de orientação jurisprudencial, a ofensa que poderia ser divisada não é à Constituição, mas sim à lei ordinária a que a sentença não reconheceu eficácia. Não se pode, data venia, dizer que, na não-aplicação da norma infra-constitucional, se tenha configurado uma negativa de vigência de norma constitucional, para declarar-se a própria sentença como inconstitucional e, ipso facto, nula.

A recusa de aplicar lei constitucionalmente correta representa, quando muito, um problema de inconstitucionalidade reflexa, o qual, porém, não é qualificado pela jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Federal, como questão constitucional. Disso decorre que a hipótese deva se submeter ao regime comum das ações rescisórias por ofensa à lei ordinária e não ao regime especial de invalidação ou rescisão das sentenças inconstitucionais .

9. Conclusões

Em regra, as nulidades dos atos processuais, como bem observa LIEBMAN “podem suprir-se ou sanar-se no decorrer do processo (...) ainda que não supridas ou sanadas, normalmente não podem mais ser arguídas depois que a sentença passou em julgado. A coisa julgada funciona como sanatória geral dos vícios do processo” .

Adverte, outrossim, o notável processualista que “há, contudo, vícios maiores, vícios essenciais que sobrevivem à coisa julgada”, afetando a eficácia de seus efeitos. Assim, contemplando vício grave - como verdadeiramente o é a inconstitucionalidade -, a res iudicata é “coisa vã, mera aparência e carece de efeitos no mundo jurídico” .

Nestas hipóteses, dá-se o que a doutrina denomina nulidade ipso iure, “tal que impede à sentença passar em julgado” . E por isso que “em todo tempo se pode opor contra ela” .

Qualquer que seja o sistema processual contemporâneo e por maior que seja o prestígio que se pretende conferir à coisa julgada, impossível será recusar a possibilidade de superveniência de sentenças substancialmente nulas, mesmo depois de esgotada a viabilidade recursal ordinária e extraordinária. À parte prejudicada pela nulidade absoluta, ipso iure, não poderá a Justiça negar o acesso à respectiva declaração de invalidade do julgado. Destaca, a propósito, CALAMANDREI :

“La verdad es que ninguna legislación, ni siquiera las dominadas por el principio germánico de la validez formal de la sentencia, ni tampoco las modernamente inspiradas en la aceleración del término de las litis y en al alacanzar con mayor rapidez la certeza sobre el fallo, pueden sustraerse a las leyes de la razón y de la lógica; y en obediencia a éstas, debe la ciencia admitir, aunque se en la medida más restringida, que aun después de la preclusión de los medios de impugnación, subsistan sentencias afectadas por la nulidad insanable”.

É diante dessa inevitável realidade da nulidade ipso iure, que às vezes atinge o ato judicial revestido da autoridade da res iudicata, que não se pode, em tempo algum, deixar de reconhecer a sobrevivência, no direito processual moderno, da antiga querela nullitatis, fora e além das hipóteses de rescisão expressamente contemplados pelo Código de Processo Civil. Para CALAMANDREI, há sem dúvida uma série de casos que a lei não menciona e que nem mesmo é possível prefixá-los todos num elenco fechado e restrito, nos quais, em verdade, “la sentenza é inidonea materialmente, si direbbe quasi fisicamente, a passare in giudicato” . Diante desse tipo de julgado visceralmente nulo, - para CALAMANDREI - “il decorso del termine per esperimentare i mezzi di impugnazione non può avere l’effetto di sanare la nullità e di precludere l’esercizio della ordinaria azione dichiarativa della nullità insanabile” .

Por força de igual raciocínio, OVIDIO A. BAPTISTA DA SILVA, é levado a concluir que a virtude sanatória dos recursos e da coisa julgada “não poderia, por exemplo, tornar uma sentença contendo dispositivo impossível ou incerto, isenta de uma tal nulidade”, de tal modo a tornar-se indispensável o cabimento de uma ulterior ação ordinária de natureza declaratória. E essa nova ação, como é lógico, “não estará sujeita a nenhum prazo preclusivo”, e, mesmo que a parte não tenha ventilado o tema no recurso, “a omissão não impedirá o exercício da ação de nulidade, em qualquer tempo” . Pouco importa, portanto, que o prazo de aforamento da ação rescisória (CPC, art. 495) tenha se exaurido antes de o interessado resolver ingressar em juízo com a argüição de nulidade ipso iure da sentença que, como no caso sub examine, esteja contaminada de insuperável inconstitucionalidade.

Com efeito, segundo pacífica orientação em sede doutrinária, “a parte prejudicada pela sentença nula ipso iure ou inexistente, para se furtar aos seus devidos efeitos, não precisa usar a via especial da ação rescisória” . Para tanto, poderá:

a) opor embargos quando a parte vencedora intentar execução da sentença; ou
b) propor qualquer ação comum tendente a reexaminar a mesma relação jurídica litigiosa, inclusive uma ação declaratória ordinária, como sobrevivência da antiga querela nullitatis .

Muito embora não haja necessidade de se valer da ação rescisória para obter o vício sério (nulidade) que contamina a decisão judicial, força é lembrar que “não será correto omitir-se o tribunal de apreciar a questão, se a parte lançar mão da ação do art. 485 do Código de Processo Civil. É que as nulidades ipso iure devem ser conhecidas e declaradas independentemente de procedimento especial para esse fim, e podem sê-lo até mesmo incidentalmente em qualquer juízo ou grau de jurisdição, até mesmo de ofício segundo o princípio contido no art. 146 e seu parágrafo único do Código Civil” .

Em semelhante conjuntura, a ação rescisória deverá ser conhecida para declarar-lhe a nulidade absoluta e insanável, eis que, na lição de PONTES DE MIRANDA, “é o ensejo que se lhe oferece, segundo os princípios” .

Em suma, a respeito da coisa julgada inconstitucional podem ser extraídas as seguintes conclusões:

1. O vício da inconstitucionalidade gera invalidade do ato público, seja legislativo, executivo ou judiciário;
2. A coisa julgada não pode servir de empecilho ao reconhecimento da invalidade da sentença dada em contrariedade à Constituição Federal;
3. Em se tratando de sentença nula de pleno direito, o reconhecimento do vício de inconstitucionalidade pode se dar a qualquer tempo e em qualquer procedimento, por ser insanável;
4. Não se há de objetar que a dispensa dos prazos decadenciais e prescricionais na espécie poderia comprometer o princípio da segurança das relações jurídicas. Para contornar o inconveniente em questão, nos casos em que se manifeste relevante interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade do ato judicial, poderá fazê-lo com eficácia ex nunc, preservando os efeitos já produzidos como, aliás, é comum no direito europeu em relação às declarações de inconstitucionalidade.

Belo Horizonte, fevereiro de 2001

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