terça-feira, 8 de junho de 2010

Acesso à Justiça e Justiça Gratuita - O Direito à Informação Jurídica - Texto Parcial da Monografia de Graduação (2005)- Carlos Gustavo Godoy Ilha*

INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe-se a analisar um dos aspectos do acesso à justiça, mais especificamente na assistência judiciária gratuita. Essa assistência, principalmente no que se refere à informação jurídica, é um direito de grande importância e relevância, estando garantido na Constituição Federal de 1988. O presente texto apresenta uma crítica à carência de informação jurídica que aflige maior parte da população brasileira provocando dificuldades no pleito de seus direitos na órbita da justiça gratuita, talvez mesmo pelo próprio desconhecimento de sua existência.

O primeiro capítulo faz um breve escorço histórico do acesso à justiça. Procura-se analisar o seu contexto histórico e a modificação desse direito no transcurso dos tempos.

O segundo capítulo trata da relevante diferença entre o acesso à justiça e o acesso ao judiciário. Esse capítulo vai se reportar à Lei nº 1.060 de 05 de fevereiro de 1950, em seu art. 4º, que estabelece o acesso à assistência judiciária gratuita pela parte hipossuficiente, ou seja por quem “[...] não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”. Verificar-se-à que essa Lei se refere ao acesso facilitado ao Poder Judiciário e não à justiça, como deveria ser. Nesse contexto é indiscutível assinalar qual a finalidade desse instrumento legal, pois o significado das palavras é essencial ao bom manejo da doutrina, na intenção de desvelar a vontade do legislador.

Ainda no segundo capítulo, discorre-se sobre o funcionamento da máquina judiciária, a morosidade do Poder Judiciário, no tocante à resolução de conflitos, e a carência no fornecimento da educação, por parte do Estado, no que diz respeito à prestação de informação jurídica às classes menos abastadas financeiramente, relativamente aos seus direitos, quando invocam a assistência judiciária gratuita ou quando sequer conhecem da existência de seus direitos, deixando de invocá-los. Verificar-se-á que o direito à informação jurídica precede ao próprio direito de acesso à justiça, ainda que gratuito.

O terceiro capítulo versa sobre a diferenciação entre os benefícios da justiça gratuita, introduzida pela Lei nº 1.060 de 05 de fevereiro de 1950, e a assistência judiciária no Brasil, estabelecida na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inc. LXXIV. 

Esse capítulo tratará, também, do princípio constitucional da igualdade, na esfera do acesso à justiça, confirmando a existência da desigualdade social fomentada pela igualdade formal, estatuída no Texto Constitucional e introduzida no âmbito da assistência judiciária gratuita. 

Analisar-se-á a desigualdade no trato dos litigantes economicamente poderosos em relação aos litigantes de pequena monta, observando que os remédios constitucionais, bem como os mecanismos de acesso à justiça colocados na Constituição Federal de 1988, à disposição de todos, não obstante serem um avanço em termos de acessibilidade ao Poder Judiciário, não mitigam as desigualdades enfrentadas pelos litigantes, inclusive, expandem-nas no âmbito do poder público.

O capítulo seguinte analisa a Lei nº 1.060/50, procurando concluir se a mesma pode ser, ou não, um engodo político, na tentativa de silenciar as camadas mais pobres de nossa sociedade. Pode-se supor que esse silêncio representaria uma conformação com a sua situação de miserabilidade em todos os aspectos de sua vida, inclusive no que se refere à sua representatividade jurídica. O capítulo também também traz uma crítica à Lei nº 7.510/86, que veio dar nova redação ao art. 4º da supracitada lei.

Ainda no quarto capítulo, vai-se estudar a questão da democracia aplicada ao acesso à justiça. Nesse ensejo, será explicado que o serviço público nos tempos atuais é encarado como se fosse um "favor" e não como um direito, no âmbito da assistência judiciária gratuita.

Buscar-se-á constatar que a barreira sócio-cultural, em nosso país, se reduz a uma falta de informação sobre os direitos, comumente enfrentada pelos litigantes mais pobres, no plano da assistência judiciária gratuita. Verificando-se que a ignorância jurídica não permite uma melhor eficácia do acesso à justiça, pois resta prejudicado um direito inerente, principalmente, às camadas menos aquinhoadas de nossa sociedade, o direito ao acesso à informação jurídica.

Por fim, no quinto capítulo, tratar-se-á de alternativas para atenuar o problema da ignorância jurídica no Brasil, tais como as medidas sócio-educativas, objetivando a educação da sociedade no tocante aos seus direitos. 

O texto irá propor que a educação à distância se constitua em meio eficaz para se garantir o direito à informação jurídica. Destaca-se que esta, por sua vez, é de acentuada importância, na medida em que proporciona uma maior garantia de que as camadas mais pobres da população terão acesso aos benefícios da gratuidade da justiça.

Procuraremos demonstrar que não é apenas a Lei nº 1.060 de 05 de fevereiro de 1950 e a Constituição de 1988, art. 5º, inc. LXXIV, que garantem o acesso à justiça aos mais carentes financeira e culturalmente, mas, sobretudo, o acesso à informação dos direitos que eles possuem, ou seja, o direito que os menos aquinhoados têm de serem bem informados sobre os seus direitos e educados para tanto.

1. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DO ACESSO À JUSTIÇA

O presente capítulo analisa o acesso à justiça buscando na história a compreensão do presente, pois este é o resultado do passado, assim como é passado do futuro, como bem ilustra o Padre Antônio Vieira, em seu Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, pronunciado em 1672.

Na linha do tempo, a proteção aos direitos dos mais pobres iniciou-se com o Código de Hamurabi que estipulava uma tutela especial a determinadas pessoas que encontravam-se em situação de miséria, mais especificamente viúvas e órfãos. Vale citar o que diz o rei da Babilônia a respeito deste instrumento legal, como transcreve Peña de Moraes, in verbis:

“Eu sou o governador guardião. Em meu seio trago o povo das terras de Sumer e Acad. Em minha sabedoria eu os refreio, para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça.”

Com essa atitude do rei babilônico, possível é imaginar que desde tempos imemoriais já existia uma certa preocupação com a tutela dos direitos das viúvas e dos órfãos que representam os pobres dos tempos modernos. No Brasil, essas viúvas e órfãos são os desamparados dos tempos hodiernos, miseráveis que não possuem quaisquer recursos financeiros e sequer culturais para enfrentar as injustiças cometidas no Estado de Direito, onde o forte constantemente oprime o fraco. Essa desigualdade se desenvolve em todos os setores da vida.

Seguindo os passos da história, inicia-se uma fase marcada pela maneira incipiente do manejo processual das normas jurídicas e pela justiça gratuita, que, contudo, “[...] foi seguido dos primeiros indícios de prestação jurisdicional ou defesa dos direitos individuais, perante os órgãos jurisdicionais, paga”.

Assim, em Atenas, os conflitos de interesses eram tutelados pela jurisdição através de uma quantia paga pelas partes envolvidas, no intuito da manutenção do órgão jurisdicional. Mais tarde, com a influência do altruísmo, toma corpo o desenvolvimento das primeiras formas de prestação jurisdicional ou defesa de direitos individuais perante os órgãos da justiça gratuita.

O alicerce que fundamentava esse acesso gratuito à jurisdição era pautado no princípio de que “todo o direito ofendido deve encontrar defensor e meios de defesa”, sendo que a cada ano eram nomeados dez (10) advogados para a defesa dos direitos dos pobres perante os Tribunais. Em Roma, Constantino, apoiado no princípio da igualdade formal, fornece à legislação de Justiniano bases para a prestação jurisdicional gratuita aos desafortunados.

Surge o Cristianismo e suas virtudes, fundamentadas no amor e na caridade, desvincularam os pobres das custas processuais e de quaisquer honorários. Tutelando, dessa maneira, os direitos dos menos abastados.

Na passagem da Era Cristã para a Idade Média, o patrocínio gratuito já existia há mais de oito séculos na Inglaterra, em virtude dos desafortunados. Na França, a defesa dos mais humildes em suas economias foi introduzida no reino de São Luiz IX (1214 a 1270). Nesse sentido explica Peña de Moraes que:

“[...] os Estados Sardos (Sardenha, Piemonte, Sabóia, Saluces, Montferato, Nice e Gênova) regulamentaram a assistência pública em 1477, por Amadeu VIII, no que foram seguidos pela Espanha, durante o reinado de Fernando e Isabel; em Portugal, com a adoção, em 1440, das ´Sietes Partidas`, que serviram de base para a formulação das Ordenações Afonsinas, de 1446; e a Escócia, que estabeleceu um sistema próprio de proteção especial aos desafortunados, fundamentado na máxima: ‘qualquer criatura pobre que por falta de astúcia e fortuna não puder defender sua causa` caracterizava-se como merecedor de assistência legal.”

Contudo, apenas com a “Declaração de Direitos do Estado da Virgínia” (EUA), de 1776, e a consequente “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1791, ocorreu a fixação dos dois princípios de maior relevância no acesso à justiça gratuita, o princípio da igualdade formal e o princípio da gratuidade da justiça.

A figura do acesso à justiça modificou-se no transcurso dos séculos, já que o Estado não tutelava, de maneira eficaz, os direitos dos cidadãos, sendo que pretendia defender apenas os mais aquinhoados financeiramente, ou seja, aqueles que pudessem custear meios para adentrar em juízo. Em meados dos séculos XVIII e XIX, na época da chamada fase do “[...] acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva”. Esse direito à igualdade formal muitas permitiu discriminações e injustiças concretas, já que a classe mais carente, em desvantagem econômica e social, não tinha seus direitos efetivamente garantidos.

Na linguagem de Cappelletti, as sociedades liberais foram substituindo os direitos individuais pelos coletivos, na proporção da intensificação das relações sociais e na transformação do conceito de direitos humanos, transfigurando para o mundo atual a característica do direito coletivo, como está descrito in verbis:

“À medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical. A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas do século dezoito e dezenove.”

No decurso da história relativa à assistência judiciária gratuita, como a descreve Peña de Moraes, o primeiro Estado que regulamentou a assistência jurídica na esfera pública foi a Holanda, em face de um Decreto de 1814, seguida, pela Áustria, “[...] em seu Código de 1816 [...]” pela Bélgica, em 1824, e pela França que, “[...] em 1851, editou o ‘Code de L’Assistance Judiciaire’”.

Ainda na cronologia acima citada, temos que a regulação da assistência jurídica na Itália ocorreu em 1865 no Principado de Mônaco, em 1893 e na Argentina, em 1914, da mesma forma como era estabelecida pelo art. 382 do projeto decorrente da Convenção Geral de Havana, de 1928.

Tanto na Áustria como na Alemanha verifica-se que a temática do acesso à justiça somente se fez perceber no pós-guerra e que os cidadãos tinham o direito de conhecer o direito do Estado, no intuito de receber deste a proteção de qualquer violação, como afirma Arruda Alvim:

“A consciência da imprescindibilidade que os pobres também tenham acesso à Justiça já era ideia corrente na Alemanha, no limiar deste século. Dizia-se que a falta de ´funcionamento` da justiça comprometia a própria sobrevivência da ordem jurídica. Diz-se mais, que cada cidadão tem o direito de conhecer o direito do Estado e de receber a respectiva proteção quando tenha tido a esfera lesada.”

Explica Cappelletti que em vários países que adotavam um sistema arcaico de assistência judiciária, encontraram um enorme obstáculo jurisprudencial. “Na Áustria, uma decisão de 19 de dezembro de 1972 declarou a inconstitucionalidade do sistema utilizado, baseado na ausência de remuneração adequada para os advogados que patrocinavam as causas dos indigentes”.

No caso do Brasil, segundo Alessandrus Cardoso, é possível afirmar que a história da justiça gratuita ou assistência judiciária tenha se iniciado com a própria colonização do país, já no século XVI, com o aparecimento de lides advindas das inúmeras formas de relações jurídicas então existentes e o chamamento da jurisdição para resolvê-las,

“[...] já davam início às situações em que constantemente as partes viam-se impossibilitadas de arcar com os possíveis custos judiciais das lides. A partir de então, a chamada ‘Assistência Judiciária Gratuita`, ou como a jurisprudência e doutrina têm preferido denominar atualmente, "Justiça Gratuita" praticamente evoluiu junto com o direito pátrio. Sua importância, atravessou os séculos, sendo garantida nas mais diversas cartas constitucionais, fossem em tempos de ditadura, ou não, e, no século XXI, seu estudo vem acompanhado de aspectos valiosos, que nunca podem ser olvidados.”

Porém, Airton Rocha Nóbrega assegura que a notícia mais remota que se tem do acesso à justiça gratuita, no Brasil, seja relativa ao tema da lei estatuída no Decreto nº 2.457, de 1897, “[...] que tratou especificamente da organização da Assistência Judiciária no Distrito Federal, nele estando inscritas disposições alusivas ao tema ora versado e, inclusive, a definição dos beneficiários do atendimento que ao Estado incumbiria realizar”.

Atualmente, o acesso gratuito à justiça é garantido pelos mais diversos países que o regulamentam em suas Constituições. A Espanha, em sua Carta Constitucional de 31 de outubro de 1978, no art. 119; a Itália em sua Constituição de 01 de janeiro de 1948, no art. 24; a Inglaterra, ancorada no “Legal Aid Act”, de 1974, elaborado pela “Law Society” e pelo “Lord Chancellur’s Advisory Comittee”, que seria uma espécie de órgão corporativo dos advogados e órgão governamental, respectivamente. Em paralelo a essa assistência jurídica prestada pelo governo inglês, tem-se o “judicare”, em virtude do qual os pobres, em face das normas jurídicas já estabelecidas, usufruíam dos serviços advocatícios da área privada patrocinada pelo Estado.

Nas palavras de Cappelletti, o “Legal Aid” foi confiado à “Law Society”, isto é, à associação nacional dos advogados, em um esquema no qual se identificavam o aconselhamento jurídico e a assistência judiciária, conforme o transcrito abaixo:

“Esse esquema reconhecia a importância de não somente compensar os advogados particulares pelo aconselhamento (‘aconselhamento jurídico’) senão ainda pela assistência nos processos (‘assistência judiciária’). Essas tentativas eram limitadas de diversas maneiras, mas começaram os movimentos para superar os anacrônicos semicaritativos programas, típicos do Laissez-faire.”

Na Suíça, no âmbito cível, os Cantões foram obrigados a garantir advogados públicos, nas situações em que ocorressem julgamentos que dependessem do conhecimento jurídico, em que a parte fosse despossuída de recursos e o direito avocado fosse viável. Na área criminal, os advogados eram pagos pelo Estado, aos acusados que fossem pobres e dependia também da gravidade da imputação.

Tanto a Suíça, como a Holanda e a Noruega, utilizam-se de sistemas semelhantes ao “judicare” inglês, dependendo da disposição orçamentária de cada país, da condição do litigante e da “possibilidade de êxito acionário”. Nos Estados Unidos, mediante a ausência legal no plano federal, diversas unidades da Federação instituíram e mantêm órgãos destinados a defesa dos direitos titularizados por desafortunados, como, por exemplo, o estado da Califórnia, que estabeleceu sua Defensoria Pública em 1914.

Na visão de Cappelletti, a França, pela Lei nº 11 de 3 de janeiro de 1972, que entrou em vigor em setembro daquele mesmo ano, revolucionou o seu sistema de acesso à justiça, com o ”securité sociale”. E em 1974 e 1975, utiliza-se do sistema “judicare”.

A Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, em seu art. 17, in fine, estabelece a gratuidade da justiça. No Panamá e em Cuba, essa assistência jurídica gratuita é exercida pelos “Abogados de Oficio”. No Uruguai, o art. 254 da Constituição da República Oriental do Uruguai, de 1966 (Seccion XV-Del Poder judicial, Capítulo VIII), é quem estabelece a gratuidade da justiça para os pobres.

Destarte, o Paraguai, que estabelece esse direito nos arts. 17 e 47 de sua Carta Maior. No mesmo sentido se expressam as Constituições do Chile, em seu capítulo III, art. 19, nº 3, terceira alínea; do Peru, promulgada em 12 de julho de 1979, em seu art. 233, nº 9; da Venezuela, promulgada em 23 de janeiro de 1961, com a emenda de 9 de maio de 1973; e, do Suriname, em seu art. 12.

Nas palavras de Adenor Cruz, o Brasil, consoante as Constituições de 1939 e 1946, estabeleceu a Constituição de 1988, no art. 5º, inc. LXXIV, a mesma orientação no tocante ao acesso ao Poder Judiciário, sendo que a Lei nº 1.060/50 regula a matéria da assistência judiciária gratuita até os dias atuais. Houve uma breve modificação promovida pela Lei nº 7.510/86, que concluiu o texto do art. 4º da Lei nº 1.060/50, no sentido de que não seria mais necessário comprovar o estado de pobreza, por parte do assistido, já que esta seria presumida, presunção relativa “juris tantum”.

Imperioso, nesse estágio de desenvolvimento do acesso à justiça, verificar, como bem observa Cappelletti, que mesmo recentemente, “[...] os estudiosos do direito, como o próprio sistema judiciário, encontravam-se afastados das preocupações da maioria da população”.

Contudo, começa a despertar um sentimento de justiça nos Estados Democráticos de Direito no sentido de reconhecer a fragilidade dos litigantes mais pobres, que são maioria, e fornecer direitos a esses litigantes. Ainda assim, carece a assistência judiciária gratuita do direito à informação jurídica aos litigantes desafortunados, pois a maior parte deles nem consciência têm de que possuem o direito ao patrocínio gratuito.


2. O ACESSO À JUSTIÇA E O ACESSO AO JUDICIÁRIO
 

2.1. Importantes diferenças

A acepção das palavras importa no bom manejo da doutrina e na convicção do que se quer afirmar. Sendo assim, é de boa técnica hermenêutica diferenciar dois termos comumente utilizados como sinônimos, mas que são diferentes em virtude da abrangência que abarcam, quais sejam: acesso à justiça e acesso ao judiciário.

O termo “acesso à justiça”, como bem observou Mauro Cappelletti, é difícil de conceituar, pois é utilizado em virtude de duas finalidades básicas do sistema jurídico: uma, com o escopo de dar aos cidadãos a possibilidade de utilizarem-se do sistema jurídico com o fim de reivindicarem seus direitos, outra no intuito de que esse sistema atinja um “[...] resultado individual e socialmente justo”. Assim, busca-se um acesso efetivo à justiça, no sentido de assegurar uma real e não meramente formal, garantia de acesso ao Poder Judiciário.

Nesse passo, Renato Nalini afirma que: “O acesso à justiça deixou de ser tema teórico para encontrar reflexo no texto constitucional e para representar um contínuo esforço de todo o operador jurídico brasileiro, no sentido de alargar a porta da justiça a todos, principalmente os excluídos”.

O acesso à justiça teria conexão com a efetivação da ordem jurídica justa que é pressuposto fundamental “[...] para a participação no poder”. É um direito social, na medida em que devem figurar sempre a eqüidade, o bem-estar social e a satisfação da sociedade.

Nessa mesma linha de pensamento caminha também Peña de Moraes afirmando que o acesso à justiça seria “o acesso à ordem jurídica justa” objetivando levar a pretensão resistida ao Poder Judiciário competente, merecendo essa pretensão um “[...] procedimento jurisdicional que dissolva o litígio e seja dotada da qualidade de justa, ou seja, que realize o valor da justiça relativamente às partes envolvidas na lide”.

A importância de se diferenciar os termos acesso à justiça e acesso ao judiciário reside no sentido de se identificar qual a real dimensão de cada qual. Sabe-se que o acesso ao judiciário é um dos braços do acesso à justiça, pois este último engloba o patrocínio judiciário e o direito à informação jurídica. O patrocínio judiciário representa o direito de acesso ao Poder Judiciário ou acesso ao judiciário.

Em brilhante síntese, Ada Pellegrini Grinover sana quaisquer dúvidas acerca da diferenciação dos dois termos acima mencionados:

“[...] isso porque ‘acesso à justiça’, longe de confundir-se com ‘acesso ao Judiciário’ significa algo mais profundo: pois importa no acesso ao ‘justo processo’, como conjunto de garantias capaz de transformar o mero procedimento em um processo tal, que viabilize, concreta e efetivamente, a tutela jurisdicional. Não é por outra razão que o acesso à justiça foi considerado o mais importante dos direitos, na medida em que dele dependem todos os demais.”

Assim, mais amplo é o acesso à justiça, pois para a consecução do acesso ao “justo processo” , como explicita Ada Pellegrini, abrange, no dizer de Peña de Moraes,“[...] o direito à informação jurídica e o direito ao patrocínio judiciário”.

Horácio Wanderley Rodrigues entende que o acesso ao judiciário corresponderia a um componente fundamental da ordem jurídica justa, pois fornece os meios processuais para que o acesso à justiça se concretize, como se subentende do texto abaixo colacionado:

“O acesso à justiça é um direito fundamental, sem o qual os demais direitos não possuem qualquer garantia de efetividade. Essa garantia depende em grande parte da existência do direito de ação e do processo como instrumentos de acesso e mediação para o exercício da atividade jurisdicional do Estado. O direito de acesso à justiça, sem instrumentos processuais que o assegurem em tempo razoável, sem um Poder Judiciário consciente de suas funções constitucionais, políticas e sociais, é mero discurso vazio. O acesso ao Judiciário é, portanto, um componente fundamental do acesso à justiça, entendido esse como acesso à ordem jurídica justa.”

Contudo, o acesso ao judiciário corresponderia ao “acesso aos tribunais”, hipótese na qual se invoca a prestação jurisdicional do Estado, mediante uma pretensão resistida, no intuito de alcançar “[...] um provimento jurisdicional satisfatório, ou, de outra forma, é o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais competentes para a dissolução de um litígio”.

Destarte, nas palavras de Peña de Moraes, é de somenos importância que o acesso à justiça não deve se limitar ao âmbito dos tribunais, no sentido da “[...] admissibilidade ao processo ou possibilidade de ingresso em juízo [...]”, mas deve se expandir como acesso “a uma ordem jurídica justa”. No mesmo sentido segue Kazuo Watanabe, afirmando o seguinte:

“A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos jurisdicionais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.”

Assim, a distinção dos termos acesso à justiça e acesso ao judiciário reside na amplitude de cada um deles. O acesso à justiça é mais amplo que o acesso ao judiciário, pois abarca, além do direito ao patrocínio judiciário, o direito à informação jurídica.

2.1.1. Acesso facilitado à justiça ou ao judiciário?

Feita a diferença entre os termos acesso à justiça e acesso ao judiciário, cabe agora estabelecer a situação existente em nosso país. Alerta-se para o fato de que a Lei nº 1.060/50, garantidora da assistência judiciária no Brasil, não fornece o acesso à justiça de maneira satisfatória, em virtude de que, embora garanta o acesso ao judiciário, não fomenta o direito à informação jurídica.

Destarte, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inc. LXXIV, estipula o seguinte: “Art. 5º, LXXIV. O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Sobre o assunto encimado, Airton Rocha Nóbrega se manifesta afirmando o seguinte:

“Cumpre enfatizar, pois, que a prestação de assistência jurídica gratuita e integral a que se refere o art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988, é abrangente, não se limitando a assegurar o acesso ao Poder Judiciário com vista ao exercício do direito de ação ou de defesa. Compreende, pelo que se extrai do conteúdo da disposição anteriormente vista, a oferta de consultoria e de assessoria, até mesmo com o escopo de evitar que demandas sejam desnecessariamente deduzidas por falta de uma prévia orientação ao cidadão. 

Examinando-se tais disposições normativas, têm-se como certo que ao Poder Público compete, dentre outras atribuições que lhe são normalmente cometidas, estruturar serviços de assistência jurídica ao indivíduo proporcionando-lhe meios de exercício amplo da cidadania.O cidadão ou qualquer pessoa hipossuficiente deve, assim, merecer especial atenção da sociedade com vista à satisfação de necessidades básicas e indispensáveis à sua inclusão no meio em que vive, reduzindo-se a cada dia a e a cada instante as diferenças entre os indivíduos de modo a proporcionar o avanço de todos".

Mas, o que existe no Brasil, em termos de assistência judiciária gratuita se reduz ao acesso ao judiciário, visto que é precário o fornecimento de cultura jurídica em nosso país, no sentido de propiciar aos carenciados informação sobre a sua situação ou mesmo de que eles possuem direitos, como o de serem patrocinados, pela Defensoria Pública, nos pleitos para a tutela de seus interesses jurídicos no âmbito do Poder Judiciário.

Destaca-se que as Defensorias Públicas se colocam como verdadeiros empecilhos ao funcionamento do sistema judiciário, como afirma Helena Delgado:

“No que respeita às defensorias públicas, entretanto, evidenciando verdadeiro empecilho ao funcionamento otimizado de nosso sistema judiciário, não se pode fugir à constatação de uma significativa falha na plena operacionalização desse que deveria ser um importante fator de incremento do acesso à justiça: sua atuação de regra deficitária em diversos Estados da federação – originadas por deficiências sobretudo estruturais e financeiras – ao lado da própria ausência de uma implantação efetiva da defensoria pública em nível federal inobstante decorridas mais de uma década e meia desde a promulgação da nova ordem constitucional que a contempla dentre as Funções Essenciais à Justiça.”

Não falta legislação para a questão da assistência judiciária gratuita no Brasil, o que se questiona é a falta de informação jurídica que as pessoas enfrentam quando possuem direitos, mas desconhecem da existência dos mesmos, por carecerem de elementos econômicos e culturais que permitam essa cognição.

Esse ingresso facilitado ao Poder Judiciário, o mencionado acesso ao judiciário, desprestigiou as dimensões valorativas e sociais do direito, pois a norma dificultou o entendimento dos fenômenos jurídicos externados no âmbito social, não permitindo que se realizasse plenamente a cognição acima referida, conforme entendimento de Renato Nalini:

“Entendeu-se o reclamo por maior facilitação de ingresso no Judiciário como reação contra o dogmatismo jurídico, forma degenerativa do positivismo jurídico. A partir da única realidade da norma, a identificação do fenômeno jurídico passou a padecer de uma simplificação irrealista do direito, ignoradas as suas dimensões axiológicas e sociais.”

Excluindo dessa maneira as camadas mais pobres de nossa sociedade, já que estas, além de serem carentes de recursos econômicos, não possuem a menor ciência de que têm direitos, marginalizadas que são dos quadros sociais. Assim, a lei acaba sendo ineficiente, pois seus destinatários principais não são atingidos.

Parece que essa forma de acesso à justiça introduzida no Brasil segue um rito singular que dificulta o acesso das camadas menos aquinhoadas ao reclamo de seus direitos, como ilustra Luiz Werneck Viana, essa

“[...] singularidade da experiência brasileira deriva do fato de ter sido concebida no âmbito de um movimento de auto-reforma do Poder Judiciário, sem qualquer mobilização da sociedade, mesmo de seus setores organizados na luta pela democratização do país, e em um contexto em que as organizações populares, notadamente as dos grandes centros urbanos, já haviam sofrido os efeitos desestruturadores do longo período de vigência do regime militar. Isso talvez explique as dificuldades enfrentadas por essa Justiça no que se refere ao estabelecimento de laços efetivos com a comunidade a que ela se destina.” [grifo nosso].

Helena Delgado, enxergando a situação sob essa óptica singular identifica nessas dificuldades enfrentadas pela comunidade, relativamente aos seus laços com o Poder Judiciário,

“[...]a própria inexistência de um correspectivo e necessário fomento à formação de uma ampla consciência de cidadania das camadas menos favorecidas da sociedade que, ainda desconhecendo sua condição de titular de direitos passíveis de proteção judicial, permanecem faticamente alijadas de tutela pelo Poder Judiciário.” [grifei]

Nota-se que, não obstante haver mecanismos que garantam aos necessitados o uso dos serviços disponíveis no âmbito da justiça gratuita, não é possível concluir a existência da efetividade de tais mecanismos supostamente facilitadores do acesso ao judiciário.

Não é demais destacar que o problema do acesso à justiça não reside no fato da existência dos direitos que tem o carente de recursos financeiros para invocar a jurisdição sem arcar com as custas processuais, mas coaduna com os problemas sociais e culturais enfrentados pelo Brasil.

Assim, faz-se necessária a implementação de políticas públicas, no sentido minorar os efeitos dos problemas sócio-culturais no âmbito do Poder Judiciário, com a finalidade de efetivar o direito ao acesso à justiça, através da informação jurídica.

2.1.1.1. Funcionamento da máquina judiciária

No Brasil, a maquina judiciária enfrenta uma grave crise que se manifesta na contaminação da burocracia estatal. Isso ocorre mesmo com todas as garantias introduzidas pela Constituição Federal de 1988 na questão do acesso à justiça, como observa André Macedo de Oliveira:

“É notório que o Judiciário brasileiro enfrenta uma grande crise. Apesar do imenso rol de garantias constitucionais, ainda permanece no tecido social a falta de acesso à justiça. A democracia não está garantida com a transição do poder. O estado de direito como garantidor dos direitos fundamentais volta a ser apenas referência ritual. O problema não está no agente político juiz. A estrutura do sistema está contaminada pela burocracia.”

A máquina judiciária enfrenta uma verdadeira crise de eficiência que se reflete nas decisões que são prolatadas nos desfechos das lides e na morosidade judiciária que se apresenta “[...] como uma realidade que interage mutuamente com suas multifacetadas causas e, inclusive, pode ainda revelar-se como um fator de agravamento da restrita margem de efetividade das decisões judiciais”.

No que diz respeito ao funcionamento da máquina judiciária, anota Luiz Fux que:

“[...] o ritualismo processual, antes de ser uma garantia para as partes, visava ao ‘engessamento’ do Poder Judiciário com o escopo de limitá-lo no seu atuar; técnica política-jurídica responsável pela valorização do elemento ‘declaratório da sentença’, como forma única de jurisdição e da impossibilidade de o próprio juiz da cognição executar as decisões na mesma relação processual. Os magistrados deviam representar apenas a ‘boca da lei’ segundo um dos mais célebres filósofos do Iluminismo. Atenta-se, assim, para o fato de que apenas declarar, exortar alguém ao cumprimento dos direitos alheios, reserva para o provimento judicial um papel secundário de uma ‘quase-divagação’, algo que se inserta, quanto ao seu cumprimento, na esfera da ‘boa vontade dos homens.’”

Assim, observa Marinoni observa que a máquina judiciária produz na população uma grande descrença no Poder Judiciário, em virtude da morosidade que este órgão enfrenta, como está descrito abaixo:

“Impende destacar, ainda, que a morosidade é fator extremamente estimulante da descrença do povo na Justiça: não são raras as vezes em que o cidadão comum se vê desestimulado a recorrer ao Poder judiciário por conhecer a sua lentidão. Por igual, a este ponto tem também importância fundamental, não são poucas as vezes que o cidadão deixa de recorrer à Justiça por conhecer os males (angústias e sofrimentos psicológicos) provocados pela morosidade da litispendência.”

Segundo Helena Delgado a morosidade relativa à prestação jurisdicional se relaciona com a demora no tempo “[...] quanto à entrega do bem da vida perseguido judicialmente [...]”, mostrando-se como instrumento hábil a aumentar a desigualdade substancial existente entre as partes, pois favorece o rico, em razão das melhores condições que ele tem de sustentar sua posição na lide, “[...] enquanto a equação custo/tempo da ação judicial resolve-se plenamente em seu favor”.

O Estado não parece estar interessado em minimizar o fator custo no funcionamento da máquina judiciária. Helena Delgado sensibiliza-se para o fato de haver “[...] uma barreira material ao amplo acesso ao sistema de justiça, ao menos por aquela parcela mais fragilizada de uma sociedade que venha a ser atingida por disparidades socioeconômicas relevantes”.

No tocante à celeridade processual, Donaldo Armelin afirma que esta só “[...] poderá ser resolvida quando se atribuir a cada órgão uma carga razoável de trabalho, compatível com as suas possibilidades”.

Assim, a máquina judiciária não encontra qualquer alternativa para resolver a inflação de processos que caminham a passos vagarosos, colocando o juiz no papel de mero subscrito de despachos e decisões redigidas por mãos alheias, tal como observa Barbosa Moreira:

“Juiz onerado com excesso de serviço é juiz que por força estudará os autos com menor profundidade, que mais facilmente se resignará ao papel de mero subscritor de despachos e decisões redigidos por mão alheia, que se absterá de iniciativas instrutórias, que se inclinará a adotar, sem exame crítico, soluções já prontas para questões de direito (e, por conseguinte, quase nunca contribuirá para a abertura de novos caminhos na jurisprudência).”

Além da morosidade no âmbito do Poder Judiciário na resolução das lides, também há que se registrar a falta de informação das pessoas de baixa renda, no que diz respeito aos direitos que possuem. Nesse aspecto, Marinoni destaca que:

“A verdade, contudo, é que as pessoas de baixa renda são as mais violentadas pela questão que ora nos ocupa. Muitas vezes estas pessoas percebem a existência de problemas, intuindo uma agressão, mas não conseguem configurá-los como de natureza jurídica. Algumas vezes, por supor uma morosidade excessiva da Justiça, o cidadão pobre deixa de recorrer ao Poder judiciário visando a proteção aos seus direitos. Em outras ocasiões, pela mesma razão ou ainda por não supor que o seu direito pode ser reparado, o pobre deixa de exigir reparação a que tem direito.”

No tocante à desinformação jurídica enfrentada pelos litigantes, de modo geral, é função do Estado promover o conhecimento jurídico, além da assistência judiciária aos necessitados. No que diz respeito aos aspectos legais, deve fornecer também informações pertinentes aos comportamentos a serem adotados, em virtude dos problemas jurídicos, “[...] propondo ações e defendendo o necessitado nas ações em face dele propostas”.

Dessa maneira, Horácio Wanderley Rodrigues afirma que:

“O sistema educacional, bem como as instituições públicas em geral, numa sociedade complexa e difusa como é a contemporânea, tem um duplo papel fundamental no que se refere ao acesso à justiça. Em primeiro lugar, o esclarecimento de quais são os direitos fundamentais que o indivíduo e a sociedade possuem, e quais os instrumentos adequados para a sua reivindicação e efetivação. Em segundo lugar, devem criar uma mentalidade em busca dos direitos, de educação para a cidadania: o respeito dos direitos passa pela consciência de que seu desrespeito levará à utilização dos mecanismos estatais de solução de conflitos.”

O Estado tem o dever de efetivar o funcionamento do sistema educacional no sentido de esclarecer aos cidadãos sobre os direitos que eles possuem e fomentar a mentalidade desses direitos, conferindo a plena utilização da máquina judiciária em seu favor e em favor da Justiça.

3. JUSTIÇA GRATUITA E ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA NO BRASIL

Há certos autores que diferenciam os termos justiça gratuita e assistência judiciária, como se expressam Pio Antunes Figueiredo Júnior e José Francisco Ferreira, que entendem que a assistência judiciária integral e gratuita, estatuída nos termos do art. 5º, inc. LXXIV, da Constituição Federal de 1988 é gênero do qual se constituem as benesses da gratuidade da justiça, regidas pela Lei nº 1.060/50, espécie, como se transcreve abaixo:

“A assistência judiciária integral e gratuita, estatuída no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, será prestada pelo Estado aos que comprovarem insuficiência de recursos. É gênero e instituto amplo, que engloba a nomeação de advogado dativo e a isenção das custas e despesas processuais. O benefício da gratuidade é espécie daquela e concede, apenas, a isenção de custas e despesas processuais, mesmo para o interessado que já tenha advogado constituído. Em ambos os casos é necessário o pedido do requerente, instruído com declaração assinada por ele, que goza de presunção de veracidade.”

Não é outro o entendimento de José Cretella Júnior sobre o tema que assim se expressa, in verbis:

“[...] denomina-se assistência judiciária o auxílio que o Estado oferece – agora obrigatoriamente – ao que se encontra em situação de miserabilidade, dispensando-o das despesas e providenciando-lhe defensor, em juízo. A lei de organização judiciária determina qual o Juiz competente para a assistência judiciária; para deferir ou indeferir o benefício da justiça gratuita, competente é o próprio Juiz da causa. A assistência judiciária abrange todos os atos que concorram, de qualquer modo, para o conhecimento da justiça – certidões de tabeliães, por exemplo -, ao passo que o benefício da justiça gratuita é circunscrito aos processos, incluída a preparação da prova e as cautelares. O requerente, antes de entrar com a ação, em juízo, deverá solicitar a assistência judiciária.”

Nas luzes do entendimento de Araken de Assis destaca-se o posicionamento acima, satisfazendo a diferenciação entre os termos ditos anteriormente, já que este doutrinador defende que a Lei nº 1.060/50 possui redação mais restrita do que o disposto na Constituição Federal de 1988, conforme transcrição colacionada:

“Segundo decorre do art. 4°, caput, c/c o art. 2°, parágrafo único da Lei 1.060/50, bastará à parte necessitada a simples alegação de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou da sua família, para obter o benefício da gratuidade. Tal benefício, outorgado para determinado processo, no qual representará a parte advogado designado (art. 14, caput, da Lei 1.060/50), se distingue da assistência judiciária integral, prestada por órgão do Estado, e prevista no art. 5°, LXXIV, da CF/88 [...] como visto o benefício da gratuidade é diferente, porque mais restrito, do que a assistência judiciária e a assistência jurídica integral.”

Gisele Gondin, nessa mesma linha de raciocínio, afirma que na assistência judiciária o patrono da parte seria indicado pelo juízo ou pela Ordem dos Advogados do Brasil, situação em que o Estado ficaria incumbido de todas as despesas processuais e honorários advocatícios. Diversamente da justiça gratuita, em que o patrono da causa é indicado pela própria parte e, por isso, o ônus do Estado se restringeria ao pagamento das despesas processuais, sendo que os honorários advocatícios convencionais deveriam ser suportados pela própria parte interessada, consoante o transcrito abaixo:

“A separação é importante na medida que na primeira hipótese – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – o patrono da parte é indicado pelo juízo ou pela OAB, situação em que ao Estado incumbe todos os ônus, tais como despesas processuais e honorários advocatícios. Não é o que ocorre na segunda hipótese – JUSTIÇA GRATUITA -, em que o patrono é indicado pela própria parte, situação em que o ônus do Estado se restringe unicamente ao pagamento das despesas processuais, sendo os honorários advocatícios suportados pelo próprio interessado, nos termos do que convencionado no respectivo contrato.”

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é expressa ao afirmar que a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LXXIV, não revogou a Lei nº 1.060/50, de acordo com o que segue transcrito:

“ACESSO À JUSTIÇA – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – LEI Nº 1.060, DE 1950 – CF, ART. 5º, LXXIV. A garantia do art. 5º, LXXIV, de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, não revogou a de assistência judiciária gratuita da Lei nº 1.060, de 1950, aos necessitados, certo que, para obtenção desta, basta a declaração, feita pelo próprio interessado, de que a sua situação econômica não permite vir a Juízo sem prejuízo de sua manutenção ou de sua família. Essa norma infraconstitucional põe-se, ademais, dentro do espírito da Constituição, que deseja que seja facilitado o acesso de todos à justiça (CF, art. 5º, XXXV) R.E. não conhecido.”

Entende-se, dessa maneira, que os preceitos contidos na Lei nº 1.060/50 não contrastam com as disposições da Constituição Federal, no sentido da prestação de assistência judiciária ampla e integral a todos.

Não há colisão no sentido da atuação desses dois diplomas legais e sim complementação, como julga o Supremo Tribunal Federal firmando o posicionamento de que a simples afirmação de pobreza bastaria para se obter os benefícios da assistência judiciária:

“JUSTIÇA GRATUITA – Necessidade de simples afirmação de pobreza da parte para a obtenção do benefício – Inexistência de incompatibilidade entre o art. 4º da Lei nº 1060/50 e o art. 5º, LXXIV, da CF/88”.

O escopo da Constituição de 1988, no que consiste à assistência judiciária descrita no art. 5º, inc. LXXIV, no sentido de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, se coloca na mesma linha de raciocínio do disposto no art. 4º da Lei nº 1.060/50, que assegura aos menos aquinhoados os benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas processuais e os honorários advocatícios, sem prejuízo próprio ou de sua família.

Assim, a Constituição de 1988 objetivou afirmar ainda mais os direitos de assistência judiciária aos mais carentes, descritos na Lei nº 1.060/50, não se colocando em oposição a esses direitos, mas reforçando a sua importância. Porém, a redação dos dispositivos legais supramencionados não é traduzida na satisfação de sua eficácia.

Como se verifica, tanto a assistência judiciária como os benefícios da gratuidade relativa à justiça são mecanismos que se compatibilizam com o ideal do acesso à justiça. Desincumbindo os mais carentes das custas processuais, aliás, é assim que sempre foi enxergado o acesso à justiça ligado à idéia de custo como observa Paulo César Santos:

“O acesso à justiça, dentre outros aspectos a se considerar, sempre foi ligado à idéia de custo. Inegável que há um custo implicitamente vinculado ao acesso à justiça, seja ele obtido pela via jurisdicional, processual, seja pela via extraprocessual. Esses custos, de qualquer espécie, dificultam e, às vezes desestimulam e até inviabilizam o acesso à justiça. Como a idéia de acesso à justiça sempre esteve vinculada, por leigos e pelos operadores do direito, à idéia unilateral da via processual, os custos econômicos e sociais provocados pelo chamado ‘processo injusto’ têm desestimulado os cidadãos a exercerem seus direitos e a resolverem seus conflitos de forma justa, causando barreiras de acesso à justiça.”

Na verdade, o fator econômico influi, poderosamente, como barreira na questão do acesso à justiça, mas acima dele está o fator cultural, principal obstáculo ao acesso à justiça, conforme assinala ainda Paulo César Santos:

“O fator econômico já por todos discutido e o fator de duração da demanda, além de encarecer para quem pode pagar, cria um desalento geral, uma expectativa de desconforto e abandono. Contudo, [...] há, também, um fator cultural que é o principal obstáculo de acesso à justiça.”

Em suma, a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 1.060 de 05 de Fevereiro de 1950 trouxeram mecanismos de acessibilidade ao Poder Judiciário que acabam sendo obsoletos, dado que o nível social dos cidadãos também se relaciona com a questão do acesso à justiça, ultrapassando os limites do problema econômico, atingindo também as esferas culturais e sociais.

Todavia, não há como negar que os diplomas legais existentes já representam um avanço na concretização desses direitos que necessitam da iniciativa estatal para que sejam efetivados.

Dessa maneira, o Estado deve primar pela efetivação desses direitos erigidos em normas legais, procurando diminuir os abismos entre as classes sociais e fornecendo cultura jurídica às pessoas necessitadas, de modo geral.

3.1. O princípio constitucional da igualdade

No âmbito da temática do acesso à justiça, não pode deixar de ser mencionado e analisado o princípio constitucional da igualdade. Princípio tão nobre inserido na Carta Constitucional de 1824 e repetido nas Constituições subseqüentes até chegar à Constituição de 1988, erigido como o pilar da equalização de direitos face às desigualdades sociais gritantes que são presenciadas nos tempos hodiernos.

Princípio, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello é o

“[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.”

Assim, dois são os mandamentos nucleares que fundamentam a assistência judiciária gratuita: o princípio da igualdade e o princípio da justiça gratuita.

O princípio da igualdade, ou como preferem alguns, princípio da isonomia, se dispõe, nos termos da Constituição em seu artigo 5º, caput, no sentido de que “[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, dessa maneira, a igualdade seria, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, uma “[...] equiparação de todos os homens no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição de deveres”. Assim, tal princípio se referiria também ao acesso à justiça, já que este é um direito fundamental erigido na Constituição de 1988, art. 5º, inc. LXXIV.

O princípio da justiça gratuita está expresso no art. 4º da Lei nº 1.060/50, que assegura os benefícios da gratuidade da justiça aos litigantes que alegarem insuficiência de recursos. É bom destacar que a doutrina divide o princípio da igualdade em dois: a igualdade material (igualdade real ou concreta) e a igualdade formal (igualdade perante a lei).

A igualdade material, real ou substancial está relacionada com o igualitarismo absoluto entre as pessoas, relativa ao estado de natureza apregoado por Locke, calcado em uma igual liberdade natural, em que predominava a igualdade absoluta. É uma idealização da igualdade, como ela deveria ser, absoluta e não relativa aos limites da lei.

Já a igualdade formal ou perante a lei seria a igualdade anunciada pela ideologia liberal, em que a igualdade não passaria de um simples nome, sem sentido no mundo real. Seria uma espécie de igualdade pautada na lei, não ultrapassando a esfera de atuação da lei. Adstrita a um simples enunciado normativo-jurídico.

A igualdade a que se reporta a Constituição Federal, nas palavras de Silvana Campos: “[...] é a igualdade meramente formal, a isonomia que decorre da lei e não da realidade. Trata-se, na verdade, de mera ficção jurídica, na medida que os homens são desiguais, mas essa desigualdade é ignorada pelo legislador”.

Destarte, o princípio da igualdade é relativo, como afirma Luís Roberto Barroso, “[...] o conceito de igualdade é sempre relativo [...]”, nesse sentido ele somente se opõe a desequiparações arbitrárias, conforme segue transcrito:

“O que ele impede efetivamente é que a ordem jurídica promova desequiparações arbitrárias, aleatórias ou mal-inspiradas: será legítima a desequiparação quando fundada e logicamente subordinada a um elemento discriminatório objetivamente aferível, que prestigie, com proporcionalidade, valores abrigados no texto constitucional.”

Contudo, preleciona Cármen Lúcia Antunes Rocha que a igualdade estatuída na Constituição de 1988 não é apenas uma expressão que afirma um Direito, “[...]é um modo justo de se viver em sociedade, por isso é princípio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental”.

Na verdade, o que se observa atualmente é que o direito de igualdade quer significar direito de igualdade de oportunidades, como bem explica Guilherme Marinoni:

“Hodiernamente, porém, o direito de igualdade quer significar direito de igualdade de oportunidades. No nosso caso, igualdade de oportunidades de acesso à justiça. Entretanto, como isso não se apresenta, e longe está de se verificar em nossa realidade, é necessário que pensemos não só nos problemas que afastam a igualdade de oportunidades, como também em mecanismos processuais que permitam a mitigação da desigualdade substancial. É através dessa lente que os princípios da universalidade da jurisdição e da igualdade processual devem ser enfocados. Na verdade, a questão do acesso à justiça traz ínsita a problemática da igualdade.”

Vê-se, portanto, que o direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como o princípio da liberdade, conforme anota José Afonso da Silva, in verbis:

“O direito de igualdade não tem merecido tantos discursos como a liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno desta obnubilaram aquela. É que a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra: por isso a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria seus interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o domínio de classe em que assenta a democracia liberal burguesa.”

O princípio da igualdade erigido na Constituição Federal de 1988 nada mais fez do que estabelecer o “status quo”, pois nas palavras de Rui Barbosa: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”.

Nesse sentido Friedrich Von Hayek, ao discorrer sobre a diferença entre igualdade formal e igualdade substantiva ou material, afirma que para assegurar a igualdade entre pessoas ou classes diversas é necessário tratá-las de maneira diferente, conforme segue transcrito:

“[...] essa igualdade formal perante a lei conflita e é de fato incompatível com qualquer atividade do governo que vise a uma igualdade material ou substantiva intencional entre os diferentes indivíduos, e que qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito. Para proporcionar resultados iguais para pessoas diferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente. Dar a diferentes pessoas as mesmas oportunidades objetivas não equivale a proporcionar-lhes a mesma oportunidade subjetiva.”

Mesmo assim é importante salientar que o princípio mencionado no texto Constitucional de 1988, art. 5º. caput, compagina-se com a ineficiência do acesso à justiça, em virtude de manter a situação vigente na legalização da arbitrariedade da natureza atrelada às desigualdades socialmente perversas que se têm observado, trazendo essa desigualdade para o plano da justiça, como anota Paulo César Santos:

“Muito se fala, atualmente, em acesso à justiça. Contudo, a experiência tem mostrado, a todo instante, que longe está a sociedade de alcançar um efetivo acesso a esse bem maior da faina humana em busca da realização de seu destino.[...] Não se trata aqui de se apregoar uma justiça social e uma ampliação de acesso à justiça romântica, sonhadora, fundada em devaneios. Não é justo nem injusto, mas natural, que as pessoas nasçam numa determinada posição social. O que pode tornar-se justo ou injusto é a ação das instituições sociais para com elas. As sociedades aristocráticas ou de castas tornam-se injustas porque erigem estas contingências no vínculo básico para integrar classes sociais privilegiadas e de modo geral fechado. Tais sociedades legalizam a arbitrariedade da natureza.”

Sendo assim, parte das classes mais poderosas econômica e culturalmente legitimam as injustiças praticadas pelas instituições sociais, em virtude de patrocinarem as desigualdades sociais e, até mesmo, arbitrariedades legais, influindo na administração da justiça.

Apesar de a Constituição de 1988 instituir as Defensorias Públicas para defender e orientar as classes deficientes de recursos financeiros, estas ainda não dispõem de condições suficientes para concorrer com bons advogados, até mesmo pelo material humano que é escasso no âmbito das Defensorias.

Assim, para que o princípio da igualdade tenha eficiência deve-se compensar as desvantagens contingenciais, entre ricos e pobres, afim de alcançar uma maior igualdade. O Estado deve oferecer ensino obrigatório e gratuito, ao menos durante os primeiros anos escolares, com o fim de se formar gerações intelectualmente bem preparadas. Dessa maneira, o aspecto econômico não influiria demasiadamente na questão do acesso à justiça. Destarte, é necessário que o Estado adote uma real igualdade de oportunidade a todos os homens no seio da sociedade, afim de que possam reivindicar seus direitos a contento de seus interesses.

Aliás, o ensino obrigatório e gratuito é uma garantia constitucional e dever do Estado para com a educação de acordo com o art. 208, inc. I, do Texto Constitucional de 1988: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante garantia de: I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria [...].” [grifo nosso]

Ainda assim, essa garantia constitucional não tem tido a eficácia que lhe deveria ser exigida, no tocante a educar a população para que esta se conscientize da existência de seus direitos e pleiteie-os, perante o Poder Judiciário.

3.1.1. A desigualdade social e a igualdade formal

Já, o princípio da igualdade a que alude a Constituição Federal em seu art. 5º, caput, em que “[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”, se refere à igualdade nas conformidades da lei, igualdade formal, da qual deriva a igualdade perante o órgão jurisdicional.

Todavia, essa igualdade formal, ao invés de diminuir as desigualdades sociais, amenizando-as, alargou ainda mais o abismo existente entre ricos e pobres. Isso Confronta-se com um dos objetivos primaciais da República Federativa do Brasil, que é a redução das desigualdades sociais, consoante descreve art. 3º, inc. III, da Constituição Federal de 1988: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III. reduzir as desigualdades sociais e regionais[...]”.

O art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão modelou o princípio de que todos nascem e permanecem iguais, no concernente aos direitos. Porém, essa Declaração instituiu uma igualdade jurídico-formal que fomentou as desigualdades econômicas . Nesse sentido, segue Georges Sarotte afirmando:

“Os revolucionários de 1789 estabeleceram o princípio da igualdade perante a lei. Ora, a lei, em virtude da existência de classes sociais, quer no seu enunciado, quer na sua aplicação, não impediu a formação de desigualdades de fato entre os cidadãos, de maneira que, por isso mesmo, a igualdade perante a lei não tem na realidade grande significado. Essa proclamação era uma reação necessária contra as desigualdades oriundas do regime feudal, sem contudo impedir que do novo regime nascessem eventualmente outras desigualdades.”

Assim, o princípio da igualdade formal, erigido na Constituição de 1988, por alargar as desigualdades sociais, não dialoga com os objetivos fundantes da República brasileira e nem com os princípios da ordem econômica que se coadunam com os ditames da justiça social, conforme dispõe art. 170, inc. VII, da Constituição de 1988: “Art. 170. A ordem econômica [...] tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VII. redução das desigualdades regionais e sociais[...]”.

Para Hayek, “[...] é inegável que o Estado de Direito produz desigualdade econômica – tudo que se pode afirmar em seu favor é que essa desigualdade não é criada intencionalmente com o objetivo de atingir este ou aquele indivíduo de modo particular”.

Destarte, Pontes de Miranda entende que o Direito poderia mitigar essas desigualdades econômicas que produziu, conforme segue transcrito:

“A desigualdade econômica não é, de modo nenhum, desigualdade de fato, e sim resultante, em parte, de desigualdades artificiais, ou desigualdades de fato mais desigualdades econômicas mantidas por leis. O direito que em parte as fez, pode amparar e extinguir as desigualdades econômicas que produziu. Exatamente aí é que se passa a grande transformação da época industrial, com tendência a maior igualdade econômica, que há de começar, como já começou em alguns países, pela atenuação mais ou menos extensa das desigualdades.”

No Brasil, o princípio da igualdade formal, estatuído no Texto Constitucional de 1988 é traduzido como autêntica espécie de norma jurídica, como preleciona Eros Roberto Grau que assim se pronuncia, ao analisar os princípios positivos do Direito:

“Pois bem, quanto aos princípios positivos do Direito, evidentemente reproduzem a estrutura peculiar das normas jurídicas. Quem o contestasse, forçosamente teria de admitir, tomando-se a Constituição, que nela divisa enunciados que não são normas jurídicas. Assim, p. ex., quem o fizesse haveria de admitir que o art. 5º, caput, da Constituição de 1988 não enuncia norma jurídica ao afirmar ‘todos são iguais perante a lei [...]’. Isso, no entanto, é insustentável, visto que temos aí, nitidamente – tal como nos arts. 1º, 2º, 17, 18, 37, v.g. – autênticas espécies de normas jurídicas. Ainda que a generalidade das regras, tal como o demonstra Jean Boulanger, os primeiros portam em si o pressuposto de fato (Tatbestand, hipótese, facti species), suficiente à sua caracterização como norma. Apenas o portam de modo a enunciar uma série indeterminada de facto specie. Quanto à estatuição (Rechtsfolge), neles também comparece, embora de modo implícito, no extremo completável com outra ou outras normas jurídicas, tal como ocorre em relação a inúmeras normas jurídicas incompletas. Estas são aquelas que apenas explicitam ou o suposto fato ou a estatuição de outras normas, não obstante configurando norma jurídica na medida em que, como anota Larenz, existem em conexão com outras normas jurídicas, participando do sentido de validade delas.”

Segundo Hayek, as normas satisfazem o Estado de Direito, ainda que o conteúdo delas não seja relevante, conforme o transcrito abaixo:

“Pode-se mesmo, afirmar que, para o Estado de Direito ser uma realidade, a existência de normas aplicadas sem exceções é mais relevante do que o seu conteúdo. Muitas vezes, o conteúdo da norma tem na verdade pouca importância, contanto que seja universalmente aplicada.”

Assim, o princípio supramencionado, não se importando com o conteúdo que explicita, por ser norma jurídica, não estabelece uma eficácia realmente relevante que se preste a fornecer aos atores jurídicos uma maior opção para a efetivação do acesso à justiça.

Portanto, para que seja possível essa efetivação, no tocante ao acesso à justiça, é desejável uma solidariedade mais efetiva e menos falaciosa, como afirma Paulo César Santos:

“Para tanto, desejável é a implementação de uma solidariedade mais efetiva e menos falaciosa. O individualismo, que em todos os continentes, e com a penetração até mesmo em grupos culturais homogêneos e tradicionais, praticam um modo de vida individualista, freqüentemente é apresentado como último avatar da modernidade. Os prosélitos desse novo estilo de cidadania gabam-se de prezar, mais do que seus antepassados, os valores democráticos da liberdade e da igualdade. Mas quanto à idéia de fraternidade, ela foi, ao que parece, definitivamente expulsa do panteão político. É a atomização da soberania popular, na autonomia concorrencial de cada ego.”

Ao se discutir sobre a igualdade formal e a elevação das desigualdades sociais que ela acarreta, fala-se também sobre a igualdade material, ou real, que seria absoluta, ideal, “impossível”, entre os homens. No que tange à igualdade absoluta, Hayek discorre o seguinte:

“[...] igualdade, completa e absoluta igualdade de todos os indivíduos em todos os assuntos que estão sujeitos ao controle humano. Se isso fosse considerado desejável pela maioria (independentemente de ser ou não praticável, ou seja, de oferecer incentivos adequados), contribuiria para dar maior clareza à idéia vaga de justiça distributiva e para dar orientação definida ao planejador. Nada, porém, está mais longe da verdade do que a idéia de que os homens em geral consideram desejável semelhante igualdade mecânica.”

Não se quer aqui discursar sobre o socialismo, justamente porque esse sistema ideológico não pregava a igualdade absoluta, mas uma “igualdade maior”, em razão de uma distribuição mais justa e mais eqüitativa, como descreve ainda Hayek:

“O que o socialismo prometia não era uma distribuição absolutamente igual, mas uma distribuição mais justa e mais eqüitativa. A única meta a que de fato se visa não é a igualdade em sentido absoluto, mas uma ‘igualdade maior’. Embora esses dois termos ideais pareçam muito semelhantes, são diferentes ao extremo no que concerne ao nosso problema.”

As diferenças entre a igualdade formal e a igualdade material sempre foram sentidas, mas nunca resolvidas. Nesse passo, anota José Afonso da Silva que embora existam diferenças entre a igualdade formal, perante a lei, e a igualdade material, igualdade real, o dispositivo constitucional do art. 5º, caput, não deve ter análise tão estreita no sentido de somente conceder a igualdade formal, como se verifica abaixo:

“Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciando que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais [...] especialmente, com as exigências da justiça, objetivo da ordem econômica e da ordem social.”

Na realidade, essa igualdade referida na Constituição é inexistente, já que nas palavras de Cappelletti, “[...] tratar como iguais a sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça”.

Isso significa que as desigualdades materiais entre as partes evidenciam, no âmbito processual e material do direito, “uma injustiça”, favorecendo a parte que tem maiores condições de conhecer seus direitos e detém recursos financeiros para pleiteá-los, em detrimento da parte desfavorecida economicamente que nem conhecimento tem de tais direitos.

3.1.1.1. Desigualdade no trato dos litigantes economicamente abastados em relação aos litigantes de pequena monta

Não obstante as enormes desigualdades econômicas existentes, há que se ter em consideração também a desigualdade no trato de litigantes economicamente poderosos em relação aos litigantes menos abastados.

Essa situação enfrentada pelos litigantes menos favorecidos economicamente se reflete, no pensamento de Watanabe, em duas vertentes para justificar quem seriam os responsáveis por essas desigualdades jurídicas. Uma delas seria a falta de informação e de orientação, impedindo o indivíduo, por sua ignorância, de adentrar no âmbito jurisdicional.

Assim, Cappelletti e Garth entendem que a capacidade jurídica se espelha na questão sócio-econômica, como está transcrito abaixo:

“A ‘capacidade jurídica’ pessoal, se se relaciona com as vantagens de recursos financeiros e diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito mais rico, e de crucial importância na determinação da acessibilidade da justiça. Ele enfoca as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas, antes que um direito possa ser efetivamente reivindicado através de nosso aparelho judiciário. Muitas (senão a maior parte) das pessoas comuns não podem – ou, ao menos, não conseguem – superar essas barreiras na maioria dos tipos de processos.”

Além disso, na visão de Watanabe, para que haja uma efetividade do acesso à justiça para litigantes de pequena monta, é necessário o atendimento dos seguintes requisitos: 1º.) a igualdade das partes mediante nivelamento cultural que viabilize o conhecimento acerca do direito pleiteado; 2º.) “a paridade de armas na disputa em juízo" que seria a igualdade substancial e não apenas formal de condições; e, 3º.) o estudo crítico da legitimidade do ordenamento jurídico.

É verdade que tanto os litigantes de pequena monta como os mais abastados carecem dos meios de informação necessários para que os seus direitos sejam efetivados. Porém, há de ser observada a desigualdade entre os litigantes acima citados, pois os primeiros, por possuírem poucos recursos, além de serem ignorantes ou analfabetos, não dispõem de finanças suficientes para adentrar em uma demanda. Faz-se então necessária a força estatal na equiparação destas partes, perante o Poder Judiciário.

No sentido de prestar informação jurídica à sociedade, vê-se que os sistemas de comunicação evoluíram muito nesse sentido. Os meios de telecomunicação como o rádio e a televisão já demonstram um avanço na questão de informar as pessoas de seus direitos. Contudo, esses meios, de modo geral, são elitizados. Esse é o caso da “TV.Justiça”, canal de televisão a cabo que se dedica exclusivamente à informação jurídica de seus telespectadores, demonstrando mais essa desigualdade que há entre os litigantes supracitados, em razão de a televisão a cabo ser paga e por isso os litigantes pobres não têm condições financeiras para ter acesso a esse serviço.

Os recursos econômicos preponderam na análise da questão ora enfrentada. Destarte, observa Silvana Campos o seguinte:

“A falta de acesso às vias jurisdicionais é problema dramático que atinge a população em geral e, em especial, os pequenos litigantes. Esses, sem condições de chegar às portas do Judiciário por questões de ordem econômica, social e psicológica, são a toda hora cerceados na defesa de seus direitos. O detentor de interesses de reduzido valor enfrenta, constantemente, sérios obstáculos que o tornam cada vez mais distante da máquina judiciária. De índole diversa são as barreiras por ele encontradas. Dentre elas, destacam-se com maior gravidade; tais como a excessiva formalidade processual, o elevado custo da demanda, a morosidade, o congestionamento nos serviços da Justiça e sua centralização, a desinformação e as dificuldades probatórias.”

O acesso à justiça, nos tempos hodiernos, é tomado como termo vulgarizado, não se colocando a favor dos mais necessitados, de maneira geral, pois o inconsciente coletivo passa a aceitar as injustiças, como ensina Paulo César Santos:

“Constantemente ouve-se falar em acesso à justiça de maneira cada vez mais diversificada. A forma como se usa a expressão chega às raias da vulgarização [...]. É de palmar demonstração que o que se torna vulgar perde em importância. O custo social disso é incomensurável, pois o inconsciente coletivo passa a conviver com uma realidade injusta, quase como se fosse natural.”

Dessa forma, em relação às pessoas que têm dificuldade de reivindicar seus direitos, convencionou-se afirmar que está difícil ou quase impossível o direito de acesso à justiça, pois somente os ricos possuiriam esse direito. Ainda nas luzes de Paulo César Santos:

“Diante das dificuldades encontradas por quem irá demandar em juízo, em busca de seus interesses, convencionou-se afirmar que está difícil ou impossível o acesso à justiça. A visão leiga mira a mera oportunidade de estar perante o Juiz. As forças do poder econômico e político subtraídas à maioria do povo, leva a essa visão tão estreita. Os ricos teriam um ‘acesso à justiça’ negado aos menos favorecidos. Não que isso não seja uma realidade constatada largamente. Apenas esse ‘acesso à justiça’, não constitui o verdadeiro acesso e nem a verdadeira justiça.”

Os litigantes de pequena monta não possuem uma efetividade formal na questão do acesso à justiça, o que se manifesta nas inúmeras barreiras a serem ultrapassadas. É necessário que haja um equilíbrio de condições entre os litigantes pobres e os litigantes ricos. Nesse passo, parafraseando Cappelletti, Silvana Campos afirma o seguinte:

“Para que ocorra esse equilíbrio de condições, Cappelletti, tratando da matéria, aponta que o Estado social moderno deve promover maior igualdade real ou menor igualdade formal, ao menos sob o ponto de vista de oportunidades, propiciando, com isso, suficiente informação e orientação ao litigante, pelo menos no que diz respeito aos seus próprios direitos, para que possam ser defendidos e reivindicados. Entende o mesmo autor, que para essa igualdade de forças é necessário propiciar a todos o acesso à educação, ao trabalho, à saúde, fazendo com que todas as pessoas possam ter acesso aos meios de comunicação modernos, com o intuito de superar obstáculos representados, em grande parte, pela pobreza. Para atingir essa finalidade, deve o Estado, através da assistência judiciária aos necessitados, suprir tais deficiências ou, ao menos minimizar a visível disparidade entre litigantes.”

Face a todos esses problemas enfrentados pelo litigante de pequena monta, constata-se que as dificuldades deste para pleitear seus direitos são bem mais elevadas que as dificuldades enfrentadas pelos litigantes mais aquinhoados, que têm condições de contratar bons advogados para o patrocínio de suas causas.

A Constituição de 1988 trouxe várias garantias individuais, dentre elas, os remédios constitucionais como o habeas corpus (art. 5º, inc. LXVIII “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”) que visa tutelar o direito de liberdade de locomoção, direito de ir e vir e o habeas data (art. 5º, inc. LXXII “conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”) que garante a proteção da esfera íntima da pessoa.

Tais remédios constitucionais estão arrolados dentre as garantias individuais constitucionais e são gratuitos. O habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, não necessitando de advogado. O habeas data embora necessite, para a sua impetração, de um advogado, é uma ação gratuita. Porém, são poucos os que têm ciência desses direitos, ambos assegurados no art. 5º da Constituição Federal de 1988.

Na verdade, os litigantes carentes sequer sabem da existência de tais garantias, por falta de informação. Uma situação que exemplifica essa realidade é a do preso, na maioria das vezes pobre, analfabeto, miserável, que desconhece do remédio constitucional garantidor da liberdade de locomoção, habeas corpus, sempre que sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder.

Há outros mecanismos de acesso à justiça que se fazem presentes no cenário nacional, mas que também não têm logrado êxito considerável tais como: as defensorias públicas, os juizados especiais e os juizados itinerantes.
As defensorias públicas estão dispostas no art. 134, caput, da Constituição Federal de 1988, que estabelece o seguinte: “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”. [grifo nosso]

Contudo, as Defensorias mostram-se deficientes na sua tarefa de prestar a assistência jurídica integral e gratuita. Isso porque, de modo geral, carecem de um número suficiente de defensores e de estrutura de apoio, não conseguindo prestar uma orientação jurídica eficiente e nem pleitear a defesa da parte necessitada a contendo de seu direito. José Afonso da Silva manifesta-se nessa linha de pensamento, resumindo bem as desigualdades entre litigantes de pequena monta e os mais abastados:

“Os pobres ainda têm acesso muito precário à justiça. Carecem de recursos para contratar advogados. O patrocínio gratuito tem-se revelado de deficiência alarmante. Os Poderes Públicos não tinham conseguido até agora estruturar um serviço de assistência judiciária aos necessitados que cumprisse efetivamente esse direito prometido entre os direitos individuais. Aí é que se tem manifestado a dramática questão da desigualdade da justiça, consistente precisamente na desigualdade de condições materiais entre litigantes, que causa profunda injustiça àqueles que, defrontando-se com litigantes afortunados e poderosos, ficam na impossibilidade de exercer seu direito de ação e de defesa assegurado na Constituição.”

Os juizados especiais estão dispostos art. 98, inc. I, da Constituição Federal de 1988 que assim se expressa:

“Art. 98 União, no Distrito Federal e Territórios, e os Estados criarão: I. juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos nas hipóteses previstas em lei [...].”

A criação desses juizados especiais demonstra a preocupação do legislador, no sentido de fornecer uma maior facilidade aos litigantes de menor potencial financeiro, já que é no âmbito desses juizados que “[...] se solucionam conflitos de pequena monta ou de determinados casos menos graves [...]” , problemas, geralmente, enfrentados pelos mais carentes.

A Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995 dispôs sobre os juizados especiais cíveis e criminais. Esses juizados especiais, auxiliados pelas defensorias, têm sido de grande valia no tocante ao acesso ao Judiciário, mas não têm se mostrado como meio hábil na resolução de conflitos. Nesse sentido, afirma Paulo César Santos:

“Necessária se faz a conscientização de que o acesso à justiça não se reduz ao acesso ao processo e que este não pode ser espelho daquele. Esses juizados devem estimular a solução pacifica do processo, usando o direito como meio de educação social do povo, mostrando que o processo em vez de solucionar conflitos sociais, pode fomentar mais conflito, no sentido que o sucumbente num processo, além de arcar com as custas do mesmo, acirram ânimos e acabam ganhando um inimigo social ao ajuizarem ações [...]. Os juizados não podem ser vistos como panacéia para todos os males que afligem a justiça porque [...] um grande número de conflitos escapam à apreciação do poder judiciário. Contudo, constituem grande avanço no que diz respeito ao acesso dos menos favorecidos à solução de seus conflitos, pela via judicial.”

Os juizados itinerantes seriam uma das formas mais adequadas de aproximar o povo do aparato judicial, que são audiências feitas em outros locais que não fóruns, interiorizando a justiça. Interessante notar que nesse mecanismo de “justiças itinerantes” não há litigiosidade em sentido estrito e seus serventuários e juízes possuem natureza apenas administrativa. Contudo, dada a extensão territorial do País, não é possível afirmar que tais juizados sejam eficientes em cumprir sua missão de fornecer o acesso de todos à justiça. Contudo, de certa maneira, esses órgãos amenizam a ignorância jurídica dos pobres em relação aos seus direitos.

É de se observar que os mecanismos constitucionais de acesso à justiça, colocados à disposição dos necessitados, não conseguem minorar as desigualdades vislumbradas no trato dos litigantes economicamente abastados em relação aos litigantes de pequena monta. O Poder Público fracassa em prover aos pobres uma orientação jurídica e uma defesa digna de seus direitos, já assentados na legislação pátria e na Carta Constitucional de 1988, uma vez que a desigualdade entre os litigantes reside muito mais na questão da informação jurídica do que propriamente na questão de ter ou não ter direitos.

4. A LEI N.º 1.060/50 E O SEU POSSÍVEL ENGODO POLÍTICO

Não obstante existirem as desigualdades supra-mencionadas, possível é perceber que a Lei nº 1.060/50 tem se enquadrado no sistema de promessas complementares introduzidas pelo Estado de Direito, como acontece com muitas outras garantias e direitos constitucionais, ao não cumprir o objetivo de efetivar a promessa-síntese de acesso à justiça como assinala Cândido Rangel, in verbis:

“Conscientes da necessidade da tutela jurisdicional institucionalizada como fator de paz na sociedade, os povos obtêm do Estado solenes promessas de dispensá-la e pautar o exercício da jurisdição por certas linhas capazes de assegurar a boa qualidade dos resultados [...]. Tais são as promessas complementares que a Constituição fez, sempre com vista a vincular o Estado-de-Direito à efetivação da tutela jurisdicional. Para satisfatório cumprimento dessas promessas, também na Constituição reside uma série de garantias, que ingressam no sistema como promessas instrumentais [...] todas destinadas a dar efetividade à promessa-síntese, que é a de acesso à justiça (art. 5º, inc. XXXV) e àquelas que estão ao redor (promessas complementares).”

Essas promessas trazidas no texto constitucional possuem um viés político, mascarando as imperfeições observadas no âmbito da aplicação das leis. Esse é o caso da Lei nº 1.060/50, documento legal que dispõe sobre a assistência judiciária gratuita aos mais carentes de recursos financeiros que não têm condições de adentrar em demandas judiciais sem prejuízo próprio ou do grupo familiar ao qual pertencem. Isso porque há fatores que obstruem ou limitam o acesso à justiça residentes “[...]na realidade política, sócio-econômica e cultural da sociedade à qual o processo se destina a servir” . Destarte, identificam-se nesse sistema barreiras ao acesso à justiça, enfrentadas pelos mais carentes, como observa ainda Cândido Rangel:

“Da lei vêm como a extrema burocracia dos serviços judiciários e pequena abrangência dos julgamentos, com causas que se repetem às centenas e congestionam os juízos e tribunais[...]. Da realidade econômica vem a insuficiência de recursos das pessoas carentes para custear o litígio sem prejuízo da subsistência, associada à precariedade dos serviços de assistência judiciária. Da realidade cultural da nação vem a desinformação e, o que é pior, a descrença nos serviços judiciários. Da estrutura política do Estado vêm dificuldades como a que se apóia no mito da discricionariedade administrativa e exagerada impermeabilidade dos atos administrativos à censura judiciária[...].”

Por isso, é possível cogitar que a Lei nº 1.060/50 está ligada a esse sistema de normas programáticas que possui um caráter eminentemente político, tendo em vista que se traduz como promessa de garantia de direitos aos mais carentes de recursos financeiros, mas encobre todas as barreiras que obstaculizam a efetividade da promessa-síntese que é o acesso à justiça.

O problema do cidadão brasileiro se encontra na base do sistema social, na sua ignorância jurídica e na dificuldade de acesso ao Poder Judiciário. Esse problema não está na faculdade que tem de adentrar em juízo através de um instrumento legal que tutele esse direito, ainda que gratuitamente.

O obstáculo está no seio da realidade social, econômica e cultural do Brasil e reflete o antagonismo entre a realidade vigente e os textos legais que albergam a temática do acesso à justiça, pois “[...] prevalece a velha e conhecida contraposição entre o ‘país legal’ e o ‘país real’[...].”

Não obstante ao fato de a Lei 1.060/50 reconhecer o direito da assistência judiciária gratuita em benefício da parte carente de recursos financeiros, não afasta a hipótese de que essa Lei tem desconhecido ou desrespeitado as condições sociais dos carenciados, se omitindo, na medida em que não dispõe seu texto não prevê um serviço de informação jurídica aos necessitados de recursos financeiros e culturais, o que torna obsoleta a norma perante os fatos sociais sobre os quais incide. Faltam políticas públicas e decretos para regulamentá-las. Nesse sentido observa Vicente Ráo:

“É certo que a incoincidência das normas com as condições sociais não obsta a eficácia das leis, mas o desconhecimento ou desrespeito dessas condições tornam as normas ilegítimas por violação do princípio ético-social que deve norteá-las, as fazem injustas, ou inadequadas ou obsoletas, provocando seja o seu abandono, seja uma reação social, para , afinal, imporem a sua reforma e o seu aperfeiçoamento, à busca do equilíbrio indispensável entre os fatos sociais e o direito. Não é a norma, pois, a fonte exclusiva dos direitos, senão a norma com os fatos sociais substancialmente conjugada, segundo as necessidades, as contingências e as aspirações humanas, individuais e coletivas, cujas soluções formam a ordem jurídica.”

Não se quer aqui afirmar que a Lei nº 1.060/50 seja totalmente desprovida de eficácia, contudo é possível imaginar que essa lei seja um engodo político, pretendendo retirar do Estado a sua incumbência de manter os carenciados informados sobre existência da gratuidade do provimento jurisdicional e o teor dos direitos que são beneficiários.

4.1. Conceito de miserabilidade jurídica

Cumpre, no estágio dos conhecimentos apresentados, conceituar o termo “miserabilidade jurídica”, adotado para definir aqueles “[...] cuja situação econômica não lhes permita pagar as custas do processo e os honorários advocatícios, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.” (art. 2º, parágrafo único da Lei nº 1.060/50).

No sentido legal, entende-se o termo “miserabilidade jurídica” como a necessidade de recorrer ao judiciário aos “[...] que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho.” (art. 2º, caput da Lei nº 1.060/50).

Assim, o miserável no sentido jurídico ou legal é o miserável no sentido econômico, no sentido de que a sua situação econômica não lhe dê condições de pagar as custas do processo e os honorários advocatícios sem que prejudique ao seu próprio sustento ou o de sua família.

Além disso, o art. 4º, caput, da lei da assistência judiciária, dispõe que “[...] a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou da família.”

O texto do artigo acima descrito é fruto de uma evolução, pois que a Lei nº 7.510/86 deu nova redação ao art. 4º da Lei nº 1.060/50, como observa Robson Flores Pinto:

“[...] A evolução atingiu o ápice com a Lei n. 7.510/86 que modificou substancialmente a redação do artigo 4º da Lei n. 1.060/50 para estabelecer que a pura e simples declaração do interessado, de não estar em condições de custear a demanda sem prejuízo próprio ou da família geraria em seu favor a presunção relativa da necessidade (antes, já nesse sentido, mas em termos menos específicos, o art. 1º, caput, da Lei n. 7.115/83).”

A Lei nº 7.115/83 dispõe das provas documentais e traz em seu art. 1º que “[...] a declaração destinada a fazer prova de [...] pobreza [...] quando firmada pelo próprio interessado ou procurador bastante, e sob as penas da lei, presume-se verdadeira.”

Afinal, o “necessitado” aludido no art. 2º da Lei nº 1.060/50 é o “pobre” descrito no art. 4º, § 1º, do mesmo diploma legal, em que “[...] Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos da lei [...].”

Dessa forma, entende-se que o beneficiário da assistência judiciária gratuita é aquele que afirmar a condição de miserabilidade jurídica ou pobreza a que faz menção o artigo supramencionado da referida lei, “[...] sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.” (art. 4º, § 1º, parte final).

É necessário que se prove o estado de necessidade ou de miserabilidade, pois na dúvida o magistrado pode avaliar as condições para deferir ou não o benefício da assistência judiciária gratuita ao que a solicitar, consoante o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

“[...] Havendo dúvida da veracidade das alegações do beneficiário, nada impede que o magistrado ordene a comprovação do estado de miserabilidade, a fim de avaliar as condições para o deferimento ou não da assistência judiciária.”

Como o beneficiário da lei de assistência judiciária é o pobre ou “miserável jurídico”, pessoa física, entende-se que a concessão do benefício referido nesta lei, às pessoas jurídicas ocorre de maneira diversa quando comparado com as pessoas naturais, já que aquelas devem comprovar a insuficiência de recursos, não se presumindo o seu estado de pobreza por simples afirmação em peça inicial, como entende o pleno do Supremo Tribunal Federal:

“[...] Ao contrário do que ocorre relativamente às pessoas naturais, não basta à pessoa jurídica asseverar a insuficiência de recursos devendo comprovar, isto sim, o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo.”

Dessa forma, a pessoa jurídica deve provar a insuficiência de recursos, quando for pessoa jurídica que possui fins lucrativos, ocorrendo com as pessoas jurídicas filantrópicas, entidades sem fins lucrativos, o mesmo que ocorre com as pessoas físicas, a presunção relativa de veracidade, bastando a afirmação de pobreza, até prova em contrário, conforme o entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça:

“[...] A pessoa jurídica requer uma bipartição, ou seja, se a mesma não objetivar o lucro (entidades filantrópicas, de assistência social, etc.), o procedimento se equipara ao da pessoa física. Com relação às pessoas jurídicas com fins lucrativos, a sistemática é diversa, pois o ‘ônus probandi’ é da autora. Em suma, admite-se a concessão da justiça gratuita às pessoas jurídicas, com fins lucrativos, desde que as mesmas comprovem, de modo satisfatório, a impossibilidade de arcarem com os encargos processuais, sem comprometer a existência da entidade[...].”

O “miserável jurídico” deve ser presumivelmente pobre e não pode haver qualquer indício de que não faz jus ao benefício, por isso as pessoas físicas que exercem algum cargo, em princípio, não são pessoas pobres, consoante o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

“[...] Não é ilegal condicionar o juiz a concessão da gratuidade à comprovação da miserabilidade jurídica, se a atividade ou o cargo exercido pelo interessado fazem em princípio presumir não se tratar de pessoa pobre.”

Em síntese, o termo “miserabilidade jurídica” depende da presunção de pobreza ou de sua respectiva prova, quando for o caso, influindo diversamente na condição de cada qual, seja como pessoa física ou jurídica.

4.1.1. Democracia e acesso à justiça

Como já foi observado, o conceito de miserabilidade jurídica influi na questão do acesso à assistência judiciária e, portanto, na temática do acesso à justiça. Esse acesso está ligado à justiça social, fomentada pela Democracia Social, visto que nas palavras de Marinoni “[...] o acesso à justiça é o rótulo da teoria processual preocupada com a questão da justiça social, justamente posta pela Democracia Social [...]”.

O conceito de democracia adveio do Estado Liberal. Este entrou em crise, fazendo surgir a questão da justiça social. O Estado passou a ser o provedor do bem-estar social, na busca da realização dos direitos sociais, deixando de lado o papel de “governo para a liberdade”.

O fato de o Estado Social ter surgido em oposição ao Estado Liberal, tentando realizar a liberdade de fato ou real, não permitiu a participação popular no processo político, frustrando a efetivação da justiça social.

Atualmente, vivenciamos a democracia representativa unida às vantagens ofertadas pela democracia direta, como afirma Clèmerson Merlim Clève, “[...] vivemos hoje, um momento em que se procura somar a técnica necessária da democracia representativa com as vantagens oferecidas pela democracia direta”.

Nesse modelo de democracia participativa, o Estado busca agregar a justiça social à participação da sociedade no processo de político. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consolidou o Estado Democrático de Direito. Este tem por conteúdo princípios da justiça social e do pluralismo, como observa Marinoni, “o Estado Democrático de Direito tem em seu conteúdo princípios da justiça social e do pluralismo, devendo realizar-se através da democracia participativa”.

Na realização dessa democracia participativa o Direito deve direcionar-se à assistência judiciária aos despossuídos de fortuna, que enfrentam uma barreira sócio-cultural refletida na desinformação e na desorientação de seus direitos, obstruindo o acesso à justiça aos principais destinatários da mesma.

Para que o Estado Democrático de Direito consiga influir na democratização da justiça, é necessário que se adotem medidas para democratizar o ensino, a cultura e a linguagem, para que haja um intercâmbio de ideias e informações.

Na verdade, o que ocorre no Brasil é que há uma evidente ignorância jurídica no que diz respeito ao não exercício dos direitos por desconhecimento dos mesmos. Isso advém da sua condição de país subdesenvolvido. No mesmo sentido destaca Donaldo Armelin que:

“[...] O subdesenvolvimento com as suas seqüelas, como o analfabetismo e ignorância e outras, campeia com maior ou menor intensidade nos variados quadrantes do Brasil. Isto implica reconhecer que em certas regiões o acesso à justiça não chega sequer a ser reclamado por desconhecimento de direitos individuais e coletivos.”

Essa ignorância jurídica constitui óbice suficiente para impedir a democratização plena do acesso à justiça. Por esse motivo é que se diz que o direito ao acesso à informação jurídica precede o próprio direito ao acesso à justiça. De nada adianta deter direitos quando nem se conhece a existência dos mesmos.

A ignorância jurídica enfrentada pelos pobres ressalta a sua necessidade em obter a orientação e a informação jurídica. Isso para que o despossuído seja participante e torne-se cidadão do mundo ao qual pertence, como observa Marinoni, in verbis:

“A questão que deve ser colocada, em verdade, é a de que o pobre, para ser cidadão, ou melhor, para ser cidadão participante no mundo em que vive, agente e responsável pela mesma, deve ser efetivamente orientado e informado sobre os seus direitos. O cidadão, em uma sociedade verdadeiramente democrática, deve conhecer e poder exercer os seus direitos independentemente de óbices de ordem econômica. Na realidade, o direito à informação é corolário do direito à livre expressão. E o direito de acesso à justiça pressupõe o direito à informação a respeito da existência dos direitos [...].”

4.1.1.1. Assistência jurídica no Brasil

No Brasil, a assistência jurídica modificou-se desde o seu aparecimento, tanto na Constituição como na legislação ordinária, como anota Luciana Gross Siqueira Cunha:

“De forma geral, é possível afirmar que o modelo de assistência jurídica adotado no Brasil compreende três momento distintos: um primeiro, até a promulgação da lei 1.060/50, que regulamentou pela primeira vez a assistência judiciária; um segundo momento, que vai da década de 50 até a Constituição federal de 1998, quando a assistência judiciária envolvia apenas atos do processo; e um terceiro, marcado pelas mudanças da Constituição Federal de 1988.”

De maneira diversa da que se possa pensar, a Lei nº 1.060/50 inicialmente surgiu como uma concessão do Estado, caracterizada como um serviço caritativo, gozado pelo necessitado. Não existia relação da Lei da assistência judiciária com o dever do Estado de garantir o acesso à justiça à população carente, nem havia essa disposição na Carta Política vigente na época da edição da lei.

Mesmo que a Lei nº. 1.060/50 tenha sido criada como se fosse uma concessão do Estado, como um sistema caritativo em prol do necessitado, carente de recursos financeiros, nos tempos atuais, ela é encarada como um dos “[...] primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais[...].”

No Brasil a assistência judiciária tem sido prestada pelos órgãos do Estado como as Defensorias Públicas, as Procuradorias dos Estados e por meio de convênios “[...] realizados com a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil [...].”

A Constituição de 1988 veio dar à assistência judiciária uma ampliação ao serviço que é previsto na Lei nº 1.060/50, pois ainda nas palavras de Luciana Siqueira Gross:

“[...] o serviço jurídico gratuito não mais se restringe ao patrocínio gratuito da causa pelo advogado, mas compreende a gratuidade de todas as custas e despesas, judiciais ou não, relativas aos atos necessários ao desenvolvimento do processo e à defesa dos direitos.”

Para que se concretize o acesso integral e gratuito à justiça é necessário que sejam enfrentados, além dos obstáculos econômicos, os obstáculos sociais e culturais, para que haja a garantia de igualdade no exercício dos direitos pela parte carente, como ensina Kazuo Watanabe:

“[...] a efetiva igualdade supõe, antes de mais nada, um nivelamento cultural, através de informação e orientação, que permite o pleno conhecimento da existência de um direito. Em seguida, vem o problema da paridade de armas em disputa.”

O que ocorre é que num país como o Brasil o serviço público é visto como um “favor”, pois a ideia que milita nos países ocidentais é a de que o poder econômico prevalece sobre qualquer outro. De tanto que advogados dos mais experientes tendem a devotar mais o seu tempo ao trabalho remunerado do que à assistência judiciária gratuita.

A idéia de “favor” introduzida no serviço da assistência judiciária no Brasil está ligada à forma pessoal no trato das relações jurídicas e legais, pois em nosso país, de acordo com Marinoni e Laércio Becker:

“[...] há um sistema de relações pessoais infiltrado, ou melhor, embaraçado a um sistema legal universalmente estabelecido e altamente racional, importado diretamente da metrópole e aplicado à força, embora deformado pela moralidade pessoal.”

No caso brasileiro, essa promiscuidade entre as relações pessoais e o serviço público, introduzem o pensamento de que “[...] o cargo público passa a ser encarado como uma verdadeira franchise para lucros pessoais e, em vez de direito à prestação do serviço público, os cidadãos buscam favores do governo, seja em bases pessoais (relacionais), seja em regime de troca por outros favores.”

A impessoalidade, até mesmo nos serviços públicos não teve, na história brasileira, uma importância de peso, pois somente em situações excepcionais os interesses objetivos lograram êxito, conforme os ensinamentos de Sérgio Buarque de Holanda, in verbis:

“No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação pessoal [...].”

Isso ressalta o quanto a idéia de “favor” no serviço público está ligada ao sistema jurídico, incluindo também o serviço de assistência judiciária e os respectivos órgãos prestadores desse serviço.

5. MEDIDAS PARA ATENUAR O PROBLEMA DA IGNORÂNCIA JURÍDICA NO BRASIL

5.1. Medidas sócio-educativas

Retornando à temática da ignorância jurídica, possível é deduzir que ela se constitui em um dos principais entraves, no tocante ao acesso à justiça, já que impede o exercício pleno dos direitos que o cidadão comum possui, em razão do desconhecimento da existência dos mesmos.

Para combater o problema da ignorância jurídica devem ser implantadas medidas sócio-educativas no âmbito da assistência judiciária gratuita, para que esta se traduza em um serviço público mais eficiente do que é na realidade.

Nesse sentido “[...] o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206) [...]” , como leciona José Afonso da Silva.

O direito à educação, referido na Constituição de 1988, inclui o direito à educação ou informação jurídica. Contudo, no Brasil, isto é quase inexistente, sendo, pois, necessário a viabilização da informação jurídica para que se facilite o acesso ao Poder Judiciário, como observa Renato Nalini:

“A informação institucional a respeito do serviço público da justiça praticamente não existe no Brasil. Há necessidade de informação ao destinatário, mediante fornecimento de todos os detalhes que viabilizam o ingresso ao Judiciário, inserindo-se conselhos práticos quanto à inteira gama de produtos disponíveis. Singelo aconselhamento jurídico, ensinando a quais setores recorrer quando necessários os préstimos da justiça, mostra-se essencial: o conjunto se amplia e a sociedade dos consumos exige nível cada dia mais elevado da educação de seus cidadãos. Saber a quem e como procurar nos momentos de vulneração a direitos é básico.”

Dessa maneira, Augusto Mario Morello afirma que o acesso correto à informação dos direitos, constitui-se como guia dos direitos, informando o “[...] que se pode usar e exercer, ou reclamar daquele outro que, por ser abusivo ou disfuncional, deixa de merecer a sombra protetora do Direito. E, lamentavelmente, quanto por ignorância ou desconhecimento não se exerce, reclama ou protege.”

A maior parte dos brasileiros carece de recursos econômicos, fato que influi na questão do conhecimento dos direitos, como o direito ao patrocínio gratuito. Conforme ensina Cappelletti, “[...] os mais pobres nem sequer sabem o mínimo a respeito da existência de certos direitos que possuem e da possibilidade de fazê-los valer em juízo servindo-se do patrocínio gratuito.”

Para que se diminua a ignorância jurídica no Brasil é necessário que o Estado invista maiores recursos e seja mais eficiente na adoção de medidas sócio-educativas como a educação sócio-jurídica e a educação à distância. O direito à informação jurídica ou educação jurídica é um direito pré-existente ao próprio direito de acesso à justiça, seja ela gratuita ou não.

5.1.1. Educação sócio-jurídica

A educação sócio-jurídica está relacionada com o complexo de informações jurídicas que devem ser comunicadas aos cidadãos, de maneira que estes possam entender a mensagem que lhe é transmitida, ou seja, entender o conteúdo de determinada norma ou mesmo da linguagem jurídica aplicável a uma determinada situação jurídica.

Isso é fundamental, pois a complexidade das informações jurídicas faz com que mesmo os que possuem mais recursos tenham dificuldades em compreender a linguagem jurídica das normas, impedindo um acesso crítico à legislação por parte da sociedade, distanciando-se da realidade social, como analisa Marinoni, in verbis:

“A complexidade da nossa sociedade faz com que mesmo as pessoas dotadas de maiores recursos tenham dificuldade em entender as normas jurídicas. As legislações sucedem-se de forma rápida e tornam-se a cada dia mais herméticas. Esse hermetismo pode ser fruto de uma intenção de impedir que muitos tenham acesso crítico à legislação, o que faz com que as normas fiquem muito distantes da realidade social.”

Devido a essa complexidade, o cidadão mais humilde desconfia do servidor da justiça, no que diz respeito ao aconselhamento jurídico, como descreve Marinoni:

“[...] O pobre, o cidadão mais humilde, por uma gama imensa de motivos, sente-se intimidado ante a determinadas formas de manifestação de poder. O pobre tem dificuldades em procurar um advogado, pois presume o advogado, e até mesmo o seu escritório, como relíquias distantes. [...] Para não se falar que alguns não confiam na figura do advogado, desconfiança esta que é comum nas camadas de baixa renda[...]”

Sendo assim, deve-se esclarecer as normas jurídicas aos cidadãos. Isso pode ser efetivado por meio de um esforço contínuo do Estado, em favor de uma educação sócio-jurídica, isto é, uma educação jurídica para a sociedade e não apenas para as elites.

Seguindo este pensamento, na linguagem de Antônio Alberto Machado, surge para o operador do direito a opção que é fundamentalmente moral,

“[...] na medida em que implica na escolha entre atuar conforme o curso das águas do poder instituído, ou, pelo contrário, trabalhar o direito contra-corrente dessas águas, visando a sua aplicação democrática e libertadora para amplas camadas sociais, tradicionalmente excluídas do processo de fruição dos direitos fundamentais de cidadania.”

Cumpre, pois, ao profissional do direito a tarefa de ser atuante nas mudanças de mentalidade da sociedade, favorecendo o processo de educação jurídica aos cidadãos, de maneira que eles consigam entender os seus direitos e lutar por eles, possibilitando, como afirma ainda Antônio Alberto Machado, o aparecimento de

“[...] um jurista engajado, em busca da aplicação libertadora do direito, como instrumento de contestação política e de resgate das classes sociais que permanecem à margem da ordem jurídica liberal burguesa, excluídas do processo jurídico, político, econômico e cultural.”

5.1.1.1. Educação à Distância

A educação à distância, assim como a educação sócio-jurídica, constitui-se como uma das medidas sócio-educativas no combate à ignorância jurídica. Nestes termos, educação à distância tem relação com o conceito de Samuel Pfromm Neto que segue transcrito:

“[...] a educação à distância supõe o uso de um, dois ou mais meios de comunicação artificial (mídia). Daí a definição proposta por Ely (1992): ‘educação à distância refere-se a ensino e aprendizagem em circunstâncias nas quais o professor e o aprendiz estão separados um do outro no tempo e no espaço; inclui telecursos, estudos por correspondência, ensino-aprendizagem por meio de computador como parte de um sistema abrangente de educação ou treinamento que culmina com a complementação de uma tarefa, cursos, currículo ou programa de treinamento.”

A educação à distância já é uma realidade, “[...] largamente utilizada em todo o mundo.” Contudo, no Brasil não foi implantada com a mesma velocidade, como ensina Renato Nalini:

“O Brasil não caminhou na mesma direção, nem com igual velocidade. A superveniência da Lei nº 9394, de 20.12.1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional conferiu tratamento diferenciado à educação à distância [...]”

O art. 80, parágrafo 4º da Lei nº 9.394/96 discrimina esse tratamento diferenciado, como segue transcrito:

“Art. 80. O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada [...] § 4º A educação a distância gozará de tratamento diferenciado, que incluirá: I - custos de transmissão reduzidos em canais comerciais de radiodifusão sonora e de sons e imagens; II - concessão de canais com finalidades exclusivamente educativas; III - reserva de tempo mínimo, sem ônus para o Poder Público, pelos concessionários de canais comerciais.”

Acompanhando esse tratamento diferenciado a educação à distância deveria se dirigir às classes mais necessitadas de recursos que se encontram alienadas do meio social. Deveria servir como um informativo dos direitos dos cidadãos que se encontram distanciados do Poder Judiciário. Exercendo um papel sobremodo importante, no tocante ao ensino jurídico aos cidadãos que estão espalhados na extensa área territorial brasileira, informando-os da existência dos seus direitos. No sentido de ampliar o acesso à justiça.

A Lei de Diretrizes e Bases, Lei nº 9.394/96 se refere à educação escolar, como descreve o § 1º, do art. 1º dessa Lei: “[...] § 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino em instituições próprias[...]”.

Mas o que ocorre é que a educação à distância tem servido às classes mais elitizadas de nossa sociedade. Pois o carente de recursos econômicos não tem condições de freqüentar a escola, mesmo no sistema público, já que a sua condição de miserabilidade não lhe confere nem o básico para subsistir, quanto mais de ter educação ou até educação sócio-jurídica.

A Lei que estabelece as diretrizes e bases na educação deveria primar por uma educação informativa, no tocante a questões jurídicas, possuindo o dever de diminuir a ignorância que os cidadãos comuns têm sobre os seus direitos e de como exercê-los. Democratizando o ensino e a informação jurídica de maneira a atingir a todos, indistintamente.

CONCLUSÃO

No estudo do acesso à justiça observa-se que este difere do acesso ao judiciário, pois engloba o acesso ao patrocínio judiciário gratuito e o acesso à informação jurídica. Enquanto que o acesso ao judiciário se constitui como um dos braços do acesso à justiça, na forma de patrocínio judiciário gratuito.

A Lei 1.060/50, que trata da assistência judiciária gratuita, contempla apenas o acesso ao judiciário, pois não dispõe em seu texto nada que verse sobre a informação jurídica. Ainda que a Constituição de 1988 garanta orientação e informação jurídica prestadas pela Defensoria Pública, há uma certa ineficiência nesse aspecto. Portanto, no Brasil temos um acesso facilitado ao Poder Judiciário e não à justiça, pois o acesso à informação de que as pessoas possuem direitos ainda não é uma realidade concretizada para a maioria da população brasileira.

*Este é apenas o texto parcial da monografia concluída em maio de 2005 e apresentada perante a banca examinadora, em 17 de maio daquele ano. As referências bibliográficas e citações no corpo do texto não foram expostas aqui. Quem tiver interesse em pesquisar o texto e a bibliografia, procure por esta monografia no setor ou departamento competente do UniCEUB em Brasília-DF.

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